Basta ler as notícias divulgadas na imprensa diariamente para perceber que o consumo de drogas por motoristas profissionais nas estradas brasileiras conta com a tolerância da sociedade e a omissão de boa parte das autoridades. Os debates sobre a legalização das drogas, com suas passeatas e manifestações nos grandes centros urbanos, parecem retrógados nas rodovias, considerando a facilidade e liberdade que motoristas profissionais encontram nas estradas para usá-las e, até, traficar.

Nem mesmo alertas do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Rodoviária Federal, que identificaram o uso de drogas por mais de 30% dos caminhoneiros em regiões de grande volume de transporte de cargas, sensibilizaram as autoridades e a sociedade. Mesmo sabendo que a grande motivação para o uso das drogas por motoristas profissionais é para suportar a jornada excessiva de trabalho com o propósito de aumentar a renda, devido ao elevado grau de endividamento dos motoristas profissionais brasileiros e a baixa remuneração do frete.

É bem verdade que a maioria desses profissionais não são usuários de drogas e muitos ficam incomodados, com justiça, com as matérias que revelam essa prática condenável e com a imagem que a categoria como um todo acaba refletindo. Entretanto, o fato é de que essa maioria dos não usuários é cada vez menor. Quem não usa ainda sofre a concorrência desleal de quem usa e consegue suportar viagens de risco, por utilizar meios ilícitos.

Motoristas profissionais, principalmente caminhoneiros que fazem viagens de longa distância, representam provavelmente a categoria profissional que mais consome drogas no país para conseguir realizar sua atividade. Diferentemente daqueles que buscam a liberação do uso e consumo de droga para lazer, a maioria dos profissionais das estradas entra no vício pela porta do trabalho e da sobrevivência.

A droga mais popular nas estradas era o chamado rebite. Geralmente medicações destinadas a outras finalidades, mas com componentes estimulantes que possibilitam manter o motorista acordado. O mercado da droga percebeu o potencial desse público e passou a oferecer cocaína, dentre outras drogas, com o mesmo propósito.

O caminhoneiro é alvo fácil, pois vive em condições críticas, sob stress e permanente fadiga, distante da família, com algum dinheiro no bolso e longe do olhar das autoridades. Muitos resistem às tentações de todo gênero que existem nas estradas mas nenhum motorista profissional vai negar que o consumo de drogas é cada vez mais frequente entre os seus colegas de profissão.

Esse cenário favorável à venda de drogas para os motoristas também representou a oportunidade para o transporte da droga pelas estradas. Muitos motoristas, que consomem drogas, ficam dependentes do traficante e começam a pagar suas dívidas transportando-as escondido no meio da carga ou no bagageiro dos ônibus. Sem contar os que passam a vender drogas e rebites. Evidente que não é a maioria mas as crescentes apreensões de drogas nas estradas revelam como esse problema vem tomando proporções assustadoras. Na semana passada, um caminhão foi flagrado pela PRF na BR-040, em Minas Gerais, com mais de 1 tonelada de maconha misturada com uma carga de arroz.

O envolvimento do narcotráfico com o setor de transportes terrestres é conhecido em vários países. Na Itália investigações das autoridades detectaram o envolvimento da Máfia, inclusive com a abertura de empresas de transporte, que crescem numa velocidade incompatível com o negócio do transporte.  Além da lavagem de dinheiro existe o transporte da droga. E qual motorista vai ousar dizer não para o serviço quando o patrão é a Máfia? Naturalmente que um processo deste não surge de imediato mas a raiz do problema está no vício do motorista e na sua necessidade de pagar a droga.

Recente matéria de uma rede nacional de TV mostrou o motorista de uma grande transportadora de veículos com 160 comprimidos de rebite na cabine. Tudo indica que, pela elevada quantidade já não era para uso próprio. Há denúncias de caminhoneiros de que até algumas empresas entregam a chave do caminhão ou documentação da carga já com o rebite. Nas viagens de ônibus, principalmente as de “turismo” e transporte de trabalhadores rurais do Norte e Nordeste para o Sudeste, muitos motoristas compram as drogas dos próprios colegas. As consequências aparecem cada vez mais em acidentes que provocam a morte de milhares de pessoas por ano e na droga encontrada em bagageiros e na carga.

Desde 1998, quando entrou em vigor o Código de Trânsito Brasileiro, é infração grave e crime de trânsito dirigir sob efeito de droga. Mas diferente do consumo de álcool, que dispõe de um sistema prático de controle para flagrar motoristas alcoolizados, o uso de outras drogas ao volante passou incólume.

Fiscalização

No caso das rodovias, as operações de fiscalização para identificação do uso de drogas exigem uma logística complexa que praticamente as inviabiliza. Os exames para detectar drogas mais comuns são de urina e sangue, cuja coleta já é difícil de ser realizada. Mesmo que houvesse um “bafômetro” para drogas, seria útil em área urbana, mas enfrentaria grandes dificuldades de aplicação nas estradas e produziria efeitos limitados no caso dos motoristas profissionais.

Basta imaginar como é difícil encontrar lugar para deixar uma carreta com carga, muitas vezes de valores superiores a R$ 1 milhão, parada porque o motorista foi flagrado sob efeito de drogas. Da mesma forma, a logística é complexa quando a viagem de ônibus de turismo, com dezenas de passageiros, tem que ser interrompida porque o motorista está sob efeito de drogas.

A solução para combater o consumo de drogas por motoristas profissionais está numa eficiente política de prevenção. Nesse sentido existem alguns instrumentos. O primeiro é o rigoroso estabelecimento de limites na jornada de trabalho do motorista profissional. Esse aspecto já está coberto pela Lei 12.619/12, a chamada Lei do Descanso, que completou dois anos de vigência precária no mês de junho.

Infelizmente, mesmo sendo aprovada no Congresso Nacional e sancionada pela Presidência da República a Lei 12.619/12 não foi aplicada com o rigor necessário pela ação imediata e agressiva de alguns grupos econômicos, ligados ao agronegócio e à indústria representados, por deputados que hoje são chamados de componentes da Bancada da Morte. Esses parlamentares iniciaram um movimento para revogar a Lei do Descanso. Lamentavelmente estão conseguindo e já venceram as batalhas na Câmara e no Senado, estando há poucos dias de ser revogada e substituída por uma legislação que vai comprometer a segurança do transporte rodoviário pois aumenta de forma irresponsável a jornada de trabalho dos motoristas profissionais e o tempo de direção contínua.

Curiosamente, surgiu na Comissão Especial, criada na prática para revogar a Lei do Descanso, a segunda alternativa para combater o uso de drogas por motoristas profissionais: os exames toxicológicos de larga janela de detecção, popularmente conhecidos como exames de cabelo. Através da extração de pequena quantidade de cabelo, é possível constatar o uso de drogas até pelo menos 90 dias antes da coleta. Isso permite identificar o usuário de drogas regular, cumprindo o papel mais importante do processo que não é o de simplesmente flagrar no ato um motorista sob efeito das drogas, que pode ser um uso eventual. No caso do transporte de cargas e passageiros, pelo risco que representa nas estradas para a vida de milhões de pessoas que trafegam pelas rodovias, o trabalho preventivo é essencial.

Nesse sentido, passou praticamente despercebido nos debates na Câmara o caso de uma das maiores transportadoras do mundo, a JB Hunt, de Arkansas nos EUA, que pode servir de modelo para o Brasil, seja na redução do consumo de drogas por motoristas profissionais, assim como no transporte socialmente responsável.

Nos EUA os motoristas profissionais são submetidos, por força de lei, a exames toxicológicos com coleta de urina. Controle realizado regularmente pela JB Hunt com seus 13 mil motoristas. Entretanto, dois acidentes graves envolvendo caminhões com motoristas da empresa, em que os exames posteriores identificaram que estavam sob efeito de drogas, motivaram a JB Hunt a rever sua política e ir além do que determina a legislação.

Depois de estudar várias alternativas descobriram os exames toxicológicos de larga janela e resolveram adotá-lo como mais uma rotina na empresa. Todos os funcionários, inclusive os executivos mais graduados foram obrigados a fazer o exame, com pequena coleta de cabelo.

Os resultados foram surpreendentes, além do consumo de drogas pelos colaboradores da empresa praticamente ser extinto, a JB Hunt conseguiu reduzir a zero o índice de acidentes com motoristas sob efeito de drogas. Já são mais de seis anos dessa política, com mais de 65 mil exames aplicados. Os resultados chamaram a atenção do Governo americano que deve tornar obrigatório o exame toxicológico de larga janela para todos os motoristas profissionais sem prejuízo do exame de urina.

Esses exames adquirem importância ainda maior no Brasil considerando que nos EUA o uso de drogas por motoristas profissionais é basicamente por lazer. Isto porque os controles de jornada, boa remuneração e condições de descanso, tornam o uso de drogas para suportar a jornada irrelevante. Não é frequente como ocorre no nosso País. Sem contar que dirigir nas ótimas e seguras estradas americanas é muito menos estressante do que enfrentas as precárias estradas brasileiras.

Desde 1998, quando o Código de Trânsito Brasileiro estabeleceu a proibição e punição para motoristas que dirigem sob efeito de drogas, nada foi feito.  Agora, com a Resolução 460 e 490 do Contran que determina a obrigatoriedade do exame toxicológico de larga janela de detecção para os motoristas profissionais quando da adição e renovação da habilitação nas categorias C, D e E, estamos dando um primeiro passo para minimizar o problema.

Curiosamente, algumas pessoas dentro do próprio governo defendem que o motorista somente poderia ser penalizado caso fosse flagrado dirigindo sob efeito de drogas. A contraditória justificativa apresentada, inclusive em eventos públicos por representante do Ministério da Saúde, é que o motorista poderia ter usado drogas por lazer, num fim de semana e não estar sob o efeito de drogas quando estivesse dirigindo, portanto não deveria ser penalizado. Como se o consumo de drogas fosse permitido por lei. A alegação surpreende ainda mais, quando sabemos que o próprio Ministério da Saúde sempre defendeu, assim como a classe médica, a importância da prevenção. Sem contar que as autoridades de saúde e fiscalização do trânsito reconhecem que, no caso das drogas, não existe ainda alguma alternativa semelhante a do bafômetro para o álcool.

Devemos acrescentar que o caso da JB Hunt nos ensina outra lição: o transporte socialmente responsável. A empresa bancou os custos dos exames de larga janela por entender a importância de que seus motoristas transportem com segurança, sem colocar em risco a vida do motoristas e de outras pessoas.

Pelo porte e abrangência de suas atividades a empresa também percebeu o custo de imagem que os acidentes representam. Numa política de marketing inteligente valorizou sua marca, o que o permitiu conquistar novos clientes que privilegiam fornecedores que tenham políticas de responsabilidade social.

Infelizmente, no Brasil a sociedade não está preocupada com o transporte socialmente responsável. Estamos cada dia mais conscientes de que devemos consumir produtos de empresas que respeitem o meio ambiente, mas não temos nenhuma preocupação sobre como esses produtos são transportados.

Funciona mais ou menos assim: na hora de adquirir um móvel queremos saber se ele foi produzido com madeira que tenha selo verde, de produção ecologicamente sustentável, mas não procuramos saber as condições que o ser humano que vai transportar a mercadoria é obrigado a suportar.

O consumidor brasileiro tem que exigir o transporte socialmente responsável, em que as condições do ser humano, o motorista, sejam respeitadas. Não pode mais fechar os olhos para a dramática realidade desses profissionais e aceitar produtos que tenham a marca do sangue dos brasileiros que morrem nas estradas, devido às condições análogas a de escravo a que são submetidos os motoristas e que levam muitos deles  ao vício das drogas.

O combate ao uso de drogas, por motoristas profissionais, faz parte desse processo sem o foco de puni-los mas libertando-os do vício ou evitando condições que levem a ele. Inclusive para preservar a vida dos colegas que não sucumbem a droga e que são prejudicados pela concorrência desleal. O que não podemos mais aceitar são motoristas transportando dezenas de passageiros e toneladas de cargas nas estradas, sob efeito de drogas. É  um risco que não podemos correr.

Rodolfo Alberto RizzottoCoordenador do SOS Estradas – autor do livro “Acidentes Não Acontecem” . Este artigo é uma prévia de um dos temas abordado no livro: “Escravidão Sobre Rodas” que será lançado na segunda quinzena de agosto pelo autor.