Pressionados a cumprir longas distâncias em pouco tempo, caminhoneiros cruzam diariamente as estradas da região de Rio Preto em condições limites de cansaço e stress. Para driblar o sono, apelam para anfetaminas, os conhecidos “rebites”, estimulantes do cérebro que permitem ao motorista dirigir, sem dormir, por até três dias consecutivos. Sob efeito da droga, na luta constante com o sono, se transformam em zumbis ao volante.

A combinação de drogas, cansaço e imprudência costuma resultar em tragédia nas estradas. Em 2011, foram 805 acidentes com caminhões nas rodovias do Noroeste paulista, com 46 mortes, de acordo com a Polícia Rodoviária. Só no último fim de semana, oito morreram em quatro colisões envolvendo veículos de carga. “Caminhoneiro que dirige sob efeito de rebite é homem-bomba na pista. Quando acaba o efeito, o sono vem e, de uma hora para outra, ele apaga. É como um blecaute”, diz o tenente Luciano Di Doné, da Polícia Rodoviária Estadual.

Tiago Barbosa, 27 anos, percorre a região toda semana transportando carne, quase sempre com horário apertado. “A gente tem hora para entregar o produto, ainda mais quando é perecível”, diz. Para dar conta, admite, só com “rebite”. O caminhoneiro começou a usar a droga logo que começou na profissão, aos 20 anos. “Com um comprimido, você fica 24 horas ligado, sem sono, sem fome, sem sede, sem vontade de urinar. Mas, quando chega perto do fim (do efeito), tem que tomar outro para varar outra noite, mas o efeito vai ficando mais fraco.”

A transição entre um e outro comprimido é o período em que costumam surgir os acidentes, segundo o toxicologista Igor Vassilieff. “O cansaço físico vem e o corpo pede descanso. É nessa hora que há perda considerável dos reflexos, vitais para um motorista.” Há um ano, Tiago “desligou” na direção de uma carreta próximo de Santos. Bateu na lateral de uma ponte, mas, por sorte, sofreu ferimentos leves. No fim de 2011, decidiu “dar um tempo” na anfetamina. Mesmo assim, na noite da última quinta-feira, o caminhoneiro mal escondia o cansaço em um posto de combustível de Rio Preto.

A região é tradicional rota de passagem para caminhoneiros que vão da Capital a Mato Grosso e da Região Sul até Goiás e Pará. Por dia, uma média de 3 mil caminhões circulam no trecho regional da rodovia Washington Luís (SP-310). Na BR-153, são outros 2,6 mil veículos de carga. Os números são das concessionárias das duas rodovias.

Parte desses motoristas dirige sob efeito de anfetaminas, admite a Polícia Rodoviária. Mas a corporação alega ser difícil flagrar o motorista sob efeito da substância. “Diferentemente da embriaguez, os efeitos do ‘rebite’ são sutis. Mas, como geralmente ele é ingerido com bebida alcoólica, flagramos o álcool”, diz o tenente Di Doné. Segundo ele, nos últimos três anos não houve flagrantes de uso da substância na região – a reportagem não localizou nenhum representante da Polícia Rodoviária Federal, responsável pela fiscalização da BR-153, para comentar o assunto.

Caso os sintomas sejam claros, o motorista é multado e tem a carteira de habilitação suspensa. Mas o risco de punição e mesmo de acidentes parece não intimidar o caminhoneiro. Vale tudo na luta contra o relógio e o sono. Orlando, caminhoneiro de Urupês, usou “rebite” por cinco anos. Chegou a ficar três noites consecutivas sem dormir, sob efeito da droga, para rodar 2 mil quilômetros entre Goiás e Rio Grande do Sul e fazer jus ao “prêmio” de R$ 150 que a transportadora oferecia àqueles que cumpriam a jornada no tempo previsto. “Quando usava, tinha alucinações, chegava a ver cobra e cachorro na pista.”

Além de usar a droga, Orlando também vendia para outros caminhoneiros. “No Norte e Nordeste do País você encontra em qualquer posto. Mas aqui no Estado de São Paulo é mais difícil de achar, então eu trazia e vendia para os colegas na estrada.” “Não tem como evitar o “rebite” na estrada. Se não tem no posto, basta pedir para um colega”, confirma o caminhoneiro José Aparecido de Freitas, que admite ter usado a droga no passado.

Uma das anfetaminas mais populares entre os caminhoneiros, o fenproporex, era vendida com receita em farmácias até outubro, quando a comercialização foi proibida pela Anvisa. Mas o medicamento ainda circula entre os caminhoneiros, fabricado em laboratórios clandestinos. Uma cartela com 30 cápsulas custa R$ 40. Há três anos, Orlando começou a sentir parte do corpo gelar toda vez que usava a droga. “Fiquei com medo de enfartar e larguei a profissão. Aquilo não é vida de gente”, resume.

Lei promete acabar com jornada excessiva

A lei que regulamenta a profissão de motorista, sancionada na última semana pela presidente Dilma Rousseff, promete acabar com as jornadas excessivas e a pressão das transportadoras. “Com essa nova norma, o uso de estimulantes como o ‘rebite’ e a cocaína entre os caminhoneiros deve diminuir”, diz Daniel Caldeira, presidente do Sindicato dos Condutores de Veículos Rodoviários de Rio Preto. Ele estima haver 14 mil caminhoneiros na região.

A nova regra determina que os caminhoneiros dirijam ininterruptamente pelo período máximo de quatro horas, com intervalo de meia hora. Em situações excepcionais, como no transporte de perecíveis, é permitido que a jornada se estenda por mais uma hora. A lei também garante repouso diário de 11 horas a cada 24 horas e descanso semanal de 30 horas para o motorista empregado e de 36 horas para o caminhoneiro autônomo. A ficalização será feita pela Polícia Rodoviária por meio do tacógrafo, aparelho que mede a velocidade e as paradas do veículo.

Quem desrespeitar a norma fica sujeito à multa de R$ 127 e ganha cinco pontos na carteira. Kagio Miura, presidente do Sindicato das Empresas de Transporte de Carga de Rio Preto, nega pressão das empresas sobre os motoristas. “Hoje os caminhões têm tecnologia que aumenta a conservação dos produtos e também melhora o conforto do caminhoneiro”, afirma.

Atualmente, a jornada média do motorista de caminhão na estrada vai das 6h às 20h, com uma hora para o almoço. Sem descansos aos domingos e feriados. “Nenhum outro trabalhador brasileiro rala tanto assim”, afiança José Aparecido de Freitas, 45 anos. Autônomo, ele pega a estrada quando o sol nasce e chega a dirigir até as 22h. Carrega de tudo: móveis, vergões de ferro, madeira. Na última sexta-feira, saiu de Barão de Cocais (MG) com destino a Corumbá (MS), passando por Rio Preto.

Freitas chega a ficar 40 dias longe de casa, no interior do Paraná. Por isso, se emociona quando lembra dos dois filhos e três netos. “A falta deles dói no peito”, afirma. Vida de caminhoneiro é pura solidão e ausência. José Mauri do Nascimento só foi conhecer uma das filhas três meses após o seu nascimento. Também perdeu a conta dos aniversários em que faltou: da mulher, da neta, do irmão, do cunhado. Mesmo assim, tem medo do dia em que tiver de abandonar a boleia. “Não sei fazer outra coisa, não aprendi a ficar em casa. Vai ser uma dureza.”

Imprudência

Com ou sem “rebite”, é fácil constatar a imprudência de caminhoneiros nas rodovias da região. Em cerca de 20 minutos na última sexta-feira, o Diário flagrou três irregularidades praticadas por motoristas de caminhão na BR-153, entre Rio Preto e Onda Verde: duas ultrapassagens em local proibido e uma conversão irregular à esquerda. De janeiro a abril deste ano, foram 5,8 mil autuações contra caminhoneiros nas estradas da região, a maioria por ultrapassagens irregulares e tráfego à esquerda em pistas duplas ou com terceira faixa.