Na cúpula do governo federal, uma operação para desmanchar um esquema que, suspeita-se, arrecadava altas cifras no superfaturamento de obras bilionárias em rodovias. Bem longe dos gabinetes, nas estradas, a população paga com vidas o preço da omissão. Somente neste mês, quando a presidente Dilma Rousseff (PT) começou a faxina que afastou 21 dirigentes do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), pais e mães já choraram a perda de pelo menos 40 filhos em BRs que cortam Minas Gerais. Levantamento feito pelo Estado de Minas mostra que parte desses dramas poderia ter sido evitada, caso o departamento envolvido nas denúncias conseguisse executar sua missão de conservar as rodovias: em trechos de 10 estradas onde ocorreram acidentes há 16 editais de reforma e manutenção paralisados devido à crise no Ministério dos Transportes.

A turbulência que apenas agravou a ineficiência histórica do Dnit explodiu justamente em julho, mês de férias escolares, em que os cidadãos mais precisam da malha rodoviária, pela qual pagam impostos, e tradicionalmente um período sangrento nas estradas. Hoje, com o fim do período de folga, milhares de famílias cumprirão a via-crúcis da volta para casa, expostas ao risco de engrossar a estatística da violência. Segundo a Polícia Rodoviária Federal (PRF), em julho do ano passado, 107 pessoas morreram nas BRs em Minas, estado que concentra a maior malha viária do país, com 273,1 mil quilômetros. Em 2009, também ocorreram 107 mortes no período.

Mas as vítimas de julho são apenas parte de uma tragédia capaz de destruir famílias, sem escolher data – em todo o ano de 2010, foram 1.344 mortes em BRs e, em 2009, 1.214. Deitado em uma cama de hospital com dois braços imobilizados, o prefeito de Três Marias, Adair Divino da Silva, de 49 anos, conhecido como Bem-te-vi, é retrato dessa situação. No domingo, dia 24, ele perdeu a mãe, Maria de Almeida Silva, de 74, e a filha, Nayara Jéssica Oliveira Silva, de 19, num só acidente, na BR-040, na altura do município de Felixlândia, Região Central de Minas.

Pela segunda vez, Bem-te-vi é o único a sobreviver em um desastre na rodovia. Em outubro de 2006, quando voltava de BH com presentes para o Dia das Crianças, a imprudência de um caminhoneiro pôs fim à vida da esposa do prefeito, Lucilene Antônia da Silva, de 44, em outro episódio em que ele saiu a salvo. “Os dois acidentes ocorreram pela irresponsabilidade de caminhoneiros. O asfalto da estrada é bom, mas há necessidade urgente de duplicação, pois o movimento é muito grande”, diz o prefeito, abalado e sem conseguir conter as lágrimas.

Vidas sem volta

“Há bilhões em obras superfaturadas e famílias indo embora. Não há como mensurar a dor da perda, a vida de ninguém volta. Estradas com melhores condições conseguiriam resguardar a irresponsabilidade de motoristas”, afirma Bem-te-vi, pai de outros dois filhos. O especialista em trânsito José Aparecido Ribeiro reforça as críticas à crise envolvendo o Ministério dos Transportes e classifica como lamentável a situação das estradas em Minas. “A solução seria reconstruir tudo. Nossas rodovias têm mais de 40 anos e estão completamente defasadas, com trechos que não comportam mais pista simples nem dão condições de segurança aos motoristas”, afirma o fundador do movimento SOS Rodovias Federais.

No dia 2, três semanas antes de Bem-te-vi perder mãe e filha, estourou a crise nos Transportes, com denúncias de suposto esquema de sobrepreços em obras. Na mesma data, foram exonerados três funcionários do Dnit, principal órgão do ministério. Dia 5, foi a vez de o ministro Alfredo Nascimento ser afastado da pasta, encerrando as atividades com ofício que suspendeu, por 30 dias, todas as licitações de projetos, obras e serviços de engenharia em curso. Entre as principais obras afetadas pela medida em Minas, estão a duplicação da BR-381, no trecho de Belo Horizonte a Governador Valadares, a revitalização do Anel Rodoviário e a construção da terceira faixa na BR-040, no sentido Rio de Janeiro.

Endereços do medo

Na BR-381, de Belo Horizonte ao Vale do Aço, trecho conhecido como Rodovia da Morte, foram duas vítimas apenas este mês – o assistente de produção da Banda 14 Bis, Wilson Maciel, de 58, e a ex-secretária de Educação de João Monlevade, Geralda Machado, de 67. Nesse mesmo trecho, repleto de curvas e riscos, há três editais suspensos, prevendo o alargamento da pista e melhoria da segurança da via (veja quadro completo na página 27). Sexta-feira, o Dnit informou, por meio de nota, que o trecho de 70 quilômetros entre BH e São Gonçalo do Rio Abaixo tem previsão para ser licitado até o fim do ano.Já na BR-040, no sentido Rio de Janeiro, há uma licitação suspensa e quatro mortes no trecho que liga BH a Alfredo Vasconcelos, na Região Central.