À frente do caminhão carregado de gasolina, João Luiz Ferreira, de 53 anos, percorreu 120 quilômetros na BR-040, altura de João Pinheiro, no Noroeste de Minas, sem ver um metro sequer da estrada. O episódio, que, por milagre, não resultou em acidente, levou o motorista a interromper uma rotina de 16 anos de 18 a 20 horas diárias na boleia da carreta. Agora, uma proposta feita em conjunto por transportadoras e trabalhadores pretende frear essa realidade perigosa e descontrolada, um dos principais ingredientes de acidentes e mortes nas rodovias. A regulamentação da jornada de trabalho de motoristas profissionais é alvo de projeto de lei em tramitação no Senado e prevê medidas como a restrição da carga horária e a imposição de tempo de descanso para os profissionais do volante.

A cada quatro horas na direção, por exemplo, os condutores terão de parar para descansar por 30 minutos. Outra proposta é um intervalo de 11horas longe do volante a cada jornada. O projeto também define jornada de trabalho de oito horas por dia mais uma hora para refeição, num total de 44 horas semanais, regida pelas normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Além disso, exige postos de paradas para motoristas profissionais a cada 200 quilômetros nas rodovias, seguro de risco pessoal e regime especial em casos de viagens de longa distância, em que o condutor fica mais de 24 horas fora de casa.

Fruto de audiência do Ministério Público do Trabalho (MPT) que reuniu entidades como a Confederação Nacional do Transporte (CNT) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transporte Terrestre (CNTTT), o acordo, firmado na semana passada, será transformado em substitutivo do Projeto de Lei 319/2009, regulamentação da profissão que tramita no Senado. A tentativa é impor regras a um setor sem controle e de alto risco, sobretudo no transporte de carga. “A rotina do caminhoneiro é de escravidão escrachada, com mais de 20 horas de trabalho por dia. Tem motorista que vai de BH a Belém, no Pará, (distância de 2,8 mil quilômetros) em 70 horas”, conta o presidente do Sindicato da União Brasileira dos Caminhoneiros, José Natan Emídio Neto.

Mortes

Em agosto, reportagem do Estado de Minas alertou que um quarto das mortes nas rodovias que cortam Minas se relacionava com acidentes com veículos de carga, segundo a Polícia Rodoviária Federal (PRF). Outra reportagem, em outubro, mostrou que 32% dos 43.465 veículos envolvidos em acidentes nas rodovias mineiras eram carretas e caminhões, conforme a PRF. Em Minas, estado com a maior malha viária do país, o problema se agrava na velocidade do crescimento do setor. O estado concentra mais de um quinto das autorizações especiais de trânsito (AET) emitidas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) para cargas pesadas, com mais de 4,4 metros de altura, 2,6 metros de largura ou comprimento superior a 19,8 metros.

Segundo um dos coordenadores da CNTTT Luís Festino a medida vai beneficiar mais de 3 milhões de profissionais, além dos cidadãos sujeitos aos perigos de rotina exaustiva nas estradas. “Não há regulamentação do setor. A jornada de trabalho acaba sendo definida por acordos coletivos isolados. Há motoristas dirigindo por até 20 horas por dia”, afirma Festino, explicando que o controle da jornada seria feito por meio de diários de bordo ou equipamentos eletrônicos. O coordenador afirma que os empresários entenderam que a velocidade na entrega da carga nem sempre é o melhor negócio. “O custo de um caminhão parado depois de um acidente é muito maior Algumas empresas registram índices de 10% da mão-de-obra afastada por motivo de saúde”, afirma.

Presidente da CNT, o senador Clésio Andrade (PR-MG) diz que o projeto representa grande avanço para o setor e maior segurança nas estradas. “Nossa expectativa é aprovar o texto no máximo até o março do ano que vem, acabando com esse quadro em que não há um controle nem regra da profissão. Essa será também uma medida de segurança”, destaca Andrade. Mas quem vive o problema na ponta, como o caminhoneiro João Luiz Ferreira, vê com desconfiança a efetividade do projeto. “Com certeza muitos acidentes poderiam ser evitados por causa do cansaço e da pressa. Mas o patrão não dá descanso. Em 16 anos, só consegui tirar férias duas vezes na vida”, diz.

Fiscalização é o maior desafio

Antes de mesmo de virar lei, especialistas em transporte e representantes do setor de cargas acreditam que a fiscalização será desafio para que a regulamentação da jornada de trabalho de motoristas profissionais decole. As propostas, que alteram o Código de Trânsito Brasileiro e a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), estariam sob o controle dos órgãos de trânsito e do Ministério do Trabalho e Emprego.

Sem desmerecer a importância da proposta, o mestre em engenharia de transportes Paulo Rogério Monteiro afirma que nem mesmo as regras que já existem e poderiam amenizar o descontrole do setor, como a pesagem de caminhões ou o uso de álcool e drogas ao volante, são fiscalizadas. “Já é difícil cumprir o código em todas os pontos e ainda criam mais regras. Acho importante regulamentar tempo de descanso, mas, mais que ação de trânsito, deve ser uma ação trabalhista”, afirma o especialista, destacando que a polícia não tem como controlar mais essa questão.

E, mesmo com a proibição de remuneração baseada em quilometragem ou carga, para não incentivar excesso de trabalho, o presidente do Sindicato da União Brasileira dos Caminhoneiros, José Natan Emídio Neto acredita que os próprios motoristas terão dificuldade em cumprir. “Em muitos lugares, não tem jeito de parar o caminhão e ainda há o risco de roubo. Além disso, para ganhar mais, muitos motoristas aproveitam para fazer o serviço de chapa e ajudar a descarregar o caminhão. A lei da estrada é terrível”, diz.

Jornada de trabalho

PROPOSTAS PARA MOTORISTAS PROFISSIONAIS APRESENTADAS AO SENADO

– A jornada será a da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), com oito horas diárias e 44 semanais, podendo ser prorrogada em até duas horas extras.
– O motorista terá de descansar 30 minutos a cada quatro horas de trabalho
– Entre uma e outra jornada, o motorista terá direito a 11 horas de descanso
– Em viagens de longa distância em que o profissional fica na estrada por mais de 24 horas será possível fazer acordo coletivo prevendo diária especial de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso
– Será considerado como parte da jornada de trabalho o período em que o motorista estiver à disposição do empregador (carga e descarga, parada para fiscalização, entre outros)
– Em viagens com duração acima de uma semana, o descanso semanal será de 36 horas por semana
– O motorista terá direito a seguro de risco pessoal
– O controle da jornada de trabalho será feita pelo empregador, que poderá ser feita por meio de anotação em diário de bordo, papeleta, equipamentos eletrônicos instalados no veículo, além de ficha de trabalho externa.
– O governo ou concessionárias de rodovias serão obrigados a implantar pontos de paradas para motoristas profissionais a cada 200 quilômetros
– Estará sujeito à detenção quem permitir ou entregar a direção do veículo, ordenando início de viagem de longa distância, ciente de que o motorista não tenha cumprido o período de descanso diário