O governo federal admite a possibilidade de rever a “Lei do Descanso”, como ficou conhecida a Lei 12.619/2012, que determina jornadas de no máximo oito horas diárias para motoristas em estradas e regulamenta o exercício profissional no transporte rodoviário brasileiro. Entidades que representam o agronegócio pressionam para que a lei seja revista e afirmam que, se efetivada, ela pode aumentar o valor de frete e encarecer o preço da produção agropecuária. Entre os principais interessados estão grandes produtores de soja, cujo cultivo no centro-oeste depende da rede rodoviária para atingir portos de exportação. Em 30 de janeiro, o secretário-executivo adjunto da Casa Civil, Gilson Bittencourt, reuniu-se para tratar do tema com Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (ABIOVE), Associação das Empresas Cerealistas do Brasil (ACEBRA) e Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).

Procurada pela Repórter Brasil, em nota, a assessoria de imprensa da Casa Civil afirmou que “está analisando o pleito do setor” e confirmou que além da reunião com representantes do agronegócio, já foram feitas outras duas reuniões para tratar do assunto. A possibilidade de o governo retroceder preocupa o Ministério Público do Trabalho (MPT) e os sindicatos de motoristas. “Nos termos propostos, as mudanças vão mudar substancialmente o caráter protetivo da lei”, avalia o procurador Paulo Douglas Almeida de Morais.

De acordo com os dados mais recentes do Ministério da Previdência Social, relativos a 2010, o setor de transporte rodoviário de cargas ocupa o primeiro lugar em número de acidentes de trabalho fatais. De 2.712 mortes ocorridas no ano, 260 foram de motoristas. Aconteceram 16.910 acidentes e, além dos mortos, 412 sofreram incapacidade permanente. Para o MPT, a “Lei do Descanso” é um importante mecanismo institucional para alterar esta realidade e proteger uma categoria profissional sujeita a muitas fragilidades trabalhistas.


O Poder Executivo, de um lado, lança uma campanha pelo trânsito seguro e, de outro, está querendo fragilizar uma legislação que vem exatamente para garantir segurança nas estradas

O Brasil subscreveu Resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) que tem como meta a redução em 50% dos acidentes em estradas e divulgou, em 2011, o Plano Nacional de Redução de Acidentes e Segurança Viária para a Década 2011-2020. “O Poder Executivo, de um lado, lança uma campanha pelo trânsito seguro e, de outro, está querendo fragilizar uma legislação que vem exatamente para garantir segurança nas estradas. Isso denota uma postura hipócrita do governo federal”, comenta Paulo Douglas.

Sobrecarga
Informações reunidas pela “Operação Jornada Legal”, iniciativa conjunta do MPT e da Polícia Rodoviária Federal, apontam que as jornadas prolongadas são constantes no setor. Cerca de 88% dos motoristas cumpre jornadas acima de 8 horas diárias, sendo que 9% cumprem jornadas de mais de 16 horas. Para aguentar tal carga, 12% admitem consumir drogas estimulantes durante o trabalho e 64% afirmam conhecer algum colega que faz o uso de substâncias químicas no trabalho.

A nova lei prevê paradas obrigatórias para os motoristas de 30 minutos a cada 4 horas dirigidas. Os representantes do agronegócio, defendem que o intervalo seja realizado a cada seis horas e que a inspeção só comece a valer mesmo depois de um ano, período no qual as ações teriam fins meramente educativos sobre a aplicação da norma, para que o setor possa fazer adequações logísticas necessárias. O prazo inicial para adaptação é de seis meses. Para justificar a pressão por mudanças na lei, o setor reclama um déficit de 50 mil motoristas e afirma que as novas regras encarecem o frete da produção. O posicionamento foi detalhado na última página da edição de janeiro da revista AgroAnalysis, publicação sobre agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

A assessoria de imprensa da Associação das Empresas Cerealistas do Brasil (ACEBRA) afirma que a ministra Gleisi Hoffmann demonstrou-se favorável em “mitigar os impactos da legislação” e que também mostrou disposição para “receber sugestões de aperfeiçoamentos pontuais no texto da lei”. Além da reunião, 10 associações de produtores enviaram uma carta cobrando alterações.

No Congresso Nacional, representantes da Frente Parlamentar da Agropecuária, a chamada Bancada Ruralista, também pressionam por alterações na nova lei. Em setembro de 2012, a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados anunciou que pediria à presidência uma Medida Provisória para alterar a norma. Neste ano, parlamentares fizeram reuniões para estudar como modificar a lei. O assunto tem sido pauta recorrente da Câmara Temática de Logística do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, de acordo com informações da revista AgroAnalysis.

Lei ainda não saiu do papel

A “Lei do Descanso” já está valendo, mas ainda não saiu do papel. Ela foi regulamentada pela resolução 417/2012 do Contran, que limita sua aplicação a rodovias com postos de descanso adequados aos intervalos previstos. Tais estradas deveriam ser indicadas pelo Ministério dos Transportes e pelo Ministério do Trabalho e Emprego, mas este último órgão declarou não ter competência técnica para avaliar e indicar quais as que se enquadram nesta categoria, gerando um impasse.

Ao mesmo tempo em que o governo discute internamente como aplicar a lei, o MPT tenta forçar na Justiça sua aplicação imediata por meio de uma Ação Civil Pública. Questionando a resolução do Contran, com o argumento de que a lei deve valer para todas as estradas brasileiras de maneira geral e irrestrita, o órgão conseguiu um mandato de segurança em primeira instância.

A Advocacia Geral da União (AGU), no entanto, recorreu e conseguiu na Justiça no último dia 8 suspender o mandato de segurança com uma liminar. A juíza relatora do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT-10), Cilene Ferreira Amaro Santos, justificou na decisão que “não verifica na determinação do Contran nenhuma ingerência no âmbito de atuação” e que a a resolução “não impede a fiscalização” da lei pelos agentes de Estado responsáveis por executá-la. A decisão, porém, não é definitiva e o caso segue na Justiça.