PERDÃO DE DÍVIDA: A recente sanção da Lei 14.206/21, que trata do Documento Eletrônico de Transporte (DT-e) traz perspectivas de melhorias à categoria dos caminhoneiros, mas com um preço alto: perdão de uma dívida de quase R$ 80 milhões, com a anisitia do Piso Mínimo, segundo dados divulgados pela Câmara dos Deputados. Foto: Aderlei de Souza

Documento digital, que pretende facilitar a vida de caminhoneiros e transportadores, reunirá cerca de 90 documentos num só, mas melhorias não são imediatas

A recente sanção da Lei 14.206/21, que trata do Documento Eletrônico de Transporte (DT-e), plataforma eletrônica que reunirá cerca de 90 documentos diferentes relacionados ao transporte de cargas num só aplicativo, traz perspectivas de melhorias à categoria dos caminhoneiros, mas com um preço alto: perdão de uma dívida de quase R$ 80 milhões, com a anistia do Piso Mínimo, segundo dados divulgados pela Câmara dos Deputados, em julho último.

Apesar de ainda depender de uma regulamentada para ser colocada em prática, o DT-e provoca críticas de alguns setores, como é o caso da Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA), que acredita que o valor seja muito maior no período entre julho de 2018 a maio de 2021.

Segundo a entidade, essa lei ofende e desrespeita a categoria. Essa anistia é um presente aos infratores e desmerece a luta dos caminhoneiros pela conquista dessa lei, após a paralisação nacional de 2018. Mais do que isso, o perdão aos infratores gera um sentimento de impunidade e de afronta às leis do país e desrespeita todos aqueles que cumpriram com o pagamento do frete conforme a Lei do Piso Mínimo de Fretes.

A indignação da CNTA veio à tona, depois que o presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou, com vetos, a Lei 14.206/21, que trata do Documento Eletrônico de Transporte (DT-e). Agora, para ela seja colocada em prática, precisa de regulamentação específica.

Segundo o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, o DT-e proporcionará vários benefícios aos caminhoneiros, entre eles, a redução do tempo de percurso e também dos custos do frete praticados em território nacional. “O novo documento digital deverá trazer redução da burocracia, eliminar intermediários, além de ajudar profissionais do transporte e simplificar as operações”, diz o ministro.

Frete competitivo

Ainda segundo Freitas, com o DT-e, os transportadores autônomos de carga terão benefícios diretos, como a redução de custos e do tempo nas paradas para fiscalização, o que tornará o frete no país mais competitivo. Além disso, o DT-e também poderá ser usado como meio de comprovação de renda, garantindo mais segurança à categoria.

Integração escalonada

Mas nem tudo são flores no DT-e. O tempo de integração entre os estados e o Distrito Federal acontecerá de forma escalonada, por tipo de carga, em cronograma específico a ser divulgado em decreto que regulamentará a Lei Federal. Em etapas posteriores, mediante convênios com estados, municípios e o Distrito Federal, será realizada a integração com os documentos fiscais.

INTEGRAÇÃO: Um ponto que traz preocupação é a integração entre Estados e o Distrito Federal. Ele deve ocorrer de forma escalonada, por tipo de carga, em cronograma específico a ser divulgado em decreto que regulamentará a Lei Federal. Foto: Aderlei de Souza

Fim da insegurança jurídica

Para a NTC&Logística, a sanção do DT-e não significa melhorias de imediato. Portanto, a entidade faz uma alerta: as ofertas de emissão do DT-e por ora não devem ser levadas em conta.

Segundo o Presidente da NTC&Logistica, Francisco Pelucio, a entidade vem trabalhando no sentido de eliminar a insegurança jurídica que a lei do piso mínimo impunha ao transportador, enquanto não há julgamento da constitucionalidade da mesma.

Ainda de acordo com Pelucio, por sugestão da NTC&Logística foi acolhida emenda anistiando as indenizações decorrentes de infrações do piso mínimo de frete, impostas pela Lei 13.703/2018.

Pontos positivos, segundo a NTC:

– Inserção dos dados necessários à emissão do DT-e poderá ser efetuada pelo embarcador, pela empresa de transporte ou por um terceiro contratado como gerador.

– A transportadora ao gerar o DT-e poderá utilizar sistema próprio ou de terceiros. O sistema da transportadora deverá estar integrado à plataforma do MInfra ou do órgão de Governo habilitado para a emissão e validação do DT-e.

– A simples geração do DT-e e a validação pelo órgão de emissão do MInfra implicará na habilitação da transportadora como entidade geradora do DT-e.

– A validação pelo MInfra estará sujeita à cobrança de tarifa a ser fixada em regulamento.

– A empresa de carga fracionada deverá gerar um único DT-e por operação de transferência abrangendo todos os despachos. Não será exigida a geração e emissão nas operações de coleta e entrega das cargas a serem consolidadas.

– O DT-e não substitui nenhum documento físico ou licença de porte obrigatório. Por ora, todos os documentos fiscais e licenças de transportes continuarão sendo exigidos normalmente. 

Ofensa à categoria

Enquanto a NTC comemora a sanção do DT-e, a CNTA (Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos) nem tanto. Para o presidente da entidade, Diumar Bueno, a anistia do governo federal às empresas que descumpriram a Lei do Piso Mínimo de Fretes nos últimos três anos vai trazer mais indignação dos caminhoneiros autônomos.

“O aumento recente do diesel e todos os outros que vierem irão agravar ainda mais a indignação dos caminhoneiros com as posições do governo de prejudicar seus direitos conquistados, como a Lei do Piso Mínimo de Fretes. Uma solução para o valor de frete mais alto seria a contratação direta, sem atravessadores, mas isso acaba de ser prejudicado com a aprovação do DT-e”, disse Bueno.

Ainda segundo Bueno, o novo DT-e também vai permitir que empresas transportadoras, contratantes de frete e operadores logísticos atuem como administradores dos direitos dos caminhoneiros autônomos, que ficarão completamente dependentes de quem os contrata.

Calote

Segundo dados divulgados pela Câmara dos Deputados em julho, seriam pelo menos R$ 80 milhões perdoados com a anistia do Piso Mínimo, mas a CNTA acredita que esse valor seja muito maior no período entre julho de 2018 a maio de 2021.

Sobre o perdão aos infratores, no último dia 15 de setembro, a CNTA solicitou por ofício ao presidente Bolsonaro veto ao artigo que permite a anistia. O veto não implicaria a aprovação do DT-e, assim como o perdão das indenizações não tem qualquer relação com a modernização e a desburocratização prometidas pelo documento eletrônico.

Por outro lado, essa anistia ofende e desrespeita a categoria, ao passo que é um presente dado aos infratores e desmerece a luta dos caminhoneiros pela conquista dessa lei, após a paralisação nacional de 2018. Mais do que isso, o perdão aos infratores gera um sentimento de impunidade e de afronta às leis do país e desrespeita todos aqueles que cumpriram com o pagamento do frete conforme a Lei do Piso Mínimo de Fretes.

Caberia ao Congresso Nacional antes da sanção do presidente alterar o texto para impedir a gestão do frete pelos contratantes, transportadoras e operadores e a anistia aos infratores do Piso Mínimo. Foi por isso que a CNTA debateu o assunto com deputados e encaminhou ao relator da proposta na Câmara, deputado Jerônimo Goergen, e aos ministérios da Infraestrutura e da Economia, ofício que apontava ajustes necessários ao documento, sendo totalmente ignorados.

A CNTA e dezenas de entidades que atuam na defesa dos interesses dos caminhoneiros autônomos enviaram também ofícios aos senadores relatando impactos negativos à categoria. A confederação também discutiu o assunto com representantes de sindicatos em um debate ao vivo pelas redes sociais e apresentou reivindicações no III Seminário Brasileiro do Transporte Rodoviário Autônomo de Cargas, promovido pela Câmara dos Deputados em agosto último. Mesmo não sofrendo alterações, foi aprovado e encaminhado ofício ao presidente Jair Bolsonaro, que se isentou de acatar ao menos um dos pleitos (a anistia), prejudicando os caminhoneiros e causando maior indignação à categoria.

DESRESPEITO: Segundo a CNTA, anistia ofende e desrespeita a categoria, é um presente dado aos infratores e desmerece a luta dos caminhoneiros pela conquista dessa lei. Foto: Aderlei de Souza

Abcam apoia o DT-e

Segundo o presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), José da Fonseca Lopes, a história do DT-e começou há quatro anos com o marco regulatório, que está no Senado Federal para ser votado, e já previa a criação do documento.

De acordo com Fonseca, desde 2018, a Abcam já previa a possibilidade da emissão do DT-e. “A entidade apoiou, desde o início, todo o processo do governo, por meio do Ministério da Infraestrutura. A Abcam foi a entidade escolhida pelo MInfra para fazer o projeto-piloto da emissão do primeiro e do segundo DT-e do Brasil.

Ainda de acordo com Fonseca, com base em tudo o que vem acontecendo no setor de transportes e com a participação do projeto-piloto, a Abcam entendeu que só dessa forma o caminhoneiro vai ter a garantia do pagamento do piso mínimo do frete e do vale-pedágio. “Essa garantia nunca foi possível com o CIOT [Código Identificador da Operação de Transportes]. O DT-e, que contempla todos os documentos, garante o pagamento do piso mínimo e do vale-pedágio. Essa é a vitória do trabalho técnico que a entidade fez e desenvolveu”, frisou

Acordo de Cooperação Técnica

Na opinião de Fonseca, o empenho em prol dos caminhoneiros teve bons resultados, tanto que a entidade aguarda uma parceria, que será assinada, em breve, com o Ministério da Infraestrutura, que é o Acordo de Cooperação Técnica, para aprofundar dentro das integrações no aplicativo e na plataforma da entidade. “Vamos ter de um lado, o embarcador, e de outro, o caminhoneiro. E a Abcam vai orquestrar toda essa negociação emitindo os DT-es”, explicou.

Fonseca finalizou dizendo que a Abcam tem como posição, apoiar o governo. “Queremos que o DT-e vá pra frente em todos os sentidos, porque só dessa forma – desde a greve de 2018 – que o caminhoneiro conseguiu ter a garantia do pagamento do piso mínimo e do vale-pedágio. No caso do CIOT, fica em aberto o valor do frete, e o caminhoneiro não consegue acertar o valor do piso mínimo. Então, pra quê o CIOT? Por isso, a Abcam trabalhou incansavelmente para que o DT-e fosse aprovado.”

Na prática

Segundo Fonseca, o DT-e vai acabar com o CIOT e com a carta-frete. “Na prática, se o caminhoneiro quiser, ele pode fazer, por meio do InfraBR, a emissão do DT-e. Mas, se ele achar muito complicado, ele pode utilizar os serviços da Abcam, que vai oferecer aos associados, e quem quiser fazer uso, os serviços do DT-e. Vamos dar uma prestação de serviços aos associados, de forma que ele tenha garantia no recolhimento do Imposto de Renda, do INSS e do Sest/Senat, que antes não tinha. Agora, com o trabalho técnico que a Abcam desenvolveu, o caminhoneiro tem poder de escolha”, ressaltou.

Truckpad

Um outro pensamento sobre o DT-e vem da Truckpad, aplicativo para celulares Android, que permite aos motoristas autônomos combinarem entregas de cargas.

Segundo o CEO da Truckpad, Carlos Mira, o DT-e vem para ajudar e o conceito é que traga ganho de eficiência no processo. “O Brasil é um dos poucos países do mundo que exige-se que a mercadoria física seja transportada com nota fiscal emitida no município e estado, onde o caminhoneiro, empreendedor, não emita seus documentos fiscais e que essa responsabilidade seja repassada para quem o contrata.”

De acordo com Mira, num primeiro momento, a iniciativa é positiva porque o objetivo do DT-e é desburocratizar e gerar mais eficiência. “O documento irá permitir haver visibilidade do processo de transporte de uma mercadoria, ou seja, teremos desde a origem, quem vende, passando pela transportadora e até chegar ao caminhoneiro. Para o governo, a medida é importante, pois será possível identificar quais são os agentes que agregam valor à cadeia.”

Mira acrescenta que, além disso, os caminhoneiros poderão provar suas receitas e as transportadoras terão um documento que permitirá, eventualmente, adquirir crédito junto às instituições financeiras, já que esta conseguirá comprovar que está prestando serviço para uma indústria ou comércio. “Isso é muito bom do ponto de vista de visibilidade e por tangibilizar um serviço a receber no futuro”, ressalta.

Ponto negativo

Entretanto, alguns pontos precisam de uma análise mais profunda, relata Mira. Dizem respeito ao envolvimento das secretarias estaduais de fazenda, uma vez que elas são parte integrante do processo. “Os Estados terão de participar ativamente integrando seus sistemas com o Ministério da Fazenda, para emitirem e terem acesso a documentos. E a fiscalização me preocupa, porque o DT-e e a nova lei sancionada pelo presidente é mais uma, dentre outras. O veto do presidente está justamente no tema da fiscalização da emissão do DT-e. E sabemos que uma lei não ‘pega’ quando não há fiscalização, quando não há penalidades e multas para aqueles que a não cumprem”, diz Mira.

O CEO da Truckpad vai além e diz que esse conceito, de o governo não se responsabilizar pelos postos de fiscalização, é preocupante porque há muita informalidade no setor de transportes. “Até hoje, o caminhoneiro que transporta carga recebe o seu pagamento, em grande parte, com uma moeda ilegal paralela que circula nas estradas brasileiras chamada de carta-frete. Com isso, a situação do caminhoneiro fica precária, não proporciona visibilidade financeira, regularidade fiscal e visibilidade para o governo sobre o valor agregado à prestação de serviço desse profissional.”

Atuação do governo

O governo é bom em implementar leis, mas há uma fragilidade na fiscalização. Um paralelo é com a lei que instituiu a tabela de fretes mínimos a serem pagos aos caminhoneiros autônomos. Hoje posso, seguramente, garantir que nem mesmo cerca de 30% a 40% dos autônomos recebem seus fretes baseados pela tabela, porque justamente não há fiscalização. Então, uma boa lei no Brasil é aquela que tem fiscalização. Os Estados têm suas agendas e não sabemos como isso se organizará.

Outro ponto é em relação ao centralizador da emissão desse documento. Se vai ser a ANTT, que tem hoje controle, principalmente, dos métodos de frete, ou o Ministério da Fazenda. Do ponto de vista técnico existe uma diferença. Se for a ANTT, as entidades de pagamentos de fretes e transportadoras serão prestigiadas. Já se o órgão centralizador for o Ministério da Fazenda, essas entidades de fretes, transporte, caminhoneiros e meio de pagamento não serão prestigiadas. Então, existem essas incertezas com relação ao DT-e que não estão claras ainda e que gera preocupação.