A atividade policial como reflexo do movimento falocêntrico: entre a performance e a efetividade
ESTUDO: André Azevedo aborda a história da formação das polícias no Brasil. Foto: Divulgação/PRF

Por André Luiz de Azevedo*

A história da formação das polícias no Brasil remete a uma cultura de braço armado para a proteção dos detentores de poder, já que em diversos momentos da história da Formação das Almas2 do Brasil resta evidenciado que a origem da polícia enquanto instituição tem início com a chegada da Família Real portuguesa ao Brasil (1808).

O contexto que ensejou a criação revela a necessidade à época de uma força policial nos mesmos moldes da Guarda Real de Lisboa, que havia permanecido em Portugal. Foi nessa situação que o então monarca D. João VI criou uma força policial que ficou conhecida por Divisão Militar da Guarda Real de Polícia do Rio de Janeiro.

Naturalmente, ao longo das décadas, a Divisão Militar expandiu para outros estados do país. Contudo, ainda que essas forças sejam as precursoras da PM, a designação “Polícia Militar” só foi atribuída a elas em 1946, na Constituição Federal elaborada após o fim do Estado Novo. Com exceção do Rio Grande do Sul, que ainda utiliza a qualificação de “Brigada Militar”, todas as outras entidades federativas adotaram a nomenclatura.

Até 1964, a Polícia Militar foi empregada em circunstâncias específicas, como manifestações e greves. Entretanto, durante o regime militar, a Polícia Civil foi extinta, e isso levou a uma reestruturação da PM. Sob o comando do Exército brasileiro foi submetida a uma única hierarquia, passando a ser utilizada, dentre outras atividades para conter movimentos contrários ao governo e garantir a ordem pública.

Com a redemocratização, a subordinação da PM foi direcionada ao governo do estado, mas muitos dos traços que definem a Polícia Militar hoje ainda vêm do período ditatorial. A fundação da estrutura e do pensamento policial no Brasil guarda íntima relação na combinação das Forças Armadas e Política no Brasil3.

O falocentrismo é tema próprio da psicanálise e na presente abordagem, com vênias aos freudianos e os lacanianos, empresta-se tão somente da abordagem

1 André Luiz de Azevedo – Policial Rodoviário Federal (PRF). Bel. Direito. Especialista em Direito Constitucional (Universidade Gama Filho – UGF). Mestre em Seguridad Vial y Tráfico (Universidad Carlos III – UC3 – Madrid). Mestre em Segurança Internacional e Defesa (Escola Superior de Guerra – ESG).

2 Importante ressaltar que a “A Formação das Almas” (CARVALHO, 1995) o autor apontava o relativo fracasso das elites positivistas, jacobinas, liberais em criar um imaginário de pertencimento que servisse de cimento cívico à nação. Se o Império havia sido bem-sucedidos em construir um Estado, a República falhava em construir a nação.

3 Já “Forças Armadas e Política no Brasil” se dedicava a compreender a origem e a persistência do militarismo por aqui. Formados em regime de completo insulamento do resto da sociedade, os militares acreditariam ser a única elite capaz de bem cuidar dos interesses nacionais, porque organizada, nacionalista e desinteressada.

generalista e cotidiana de Leandro Karnal, na qual define esse movimento social como algo pautado na supervalorização do masculino e dos estereótipos a ele associados em nossa sociedade, atribuindo a essa visão predominante a exaltação da violência, do ódio, do contender4.

Nos últimos anos, especialmente, a partir da guerra do Vietnã, o mundo vem assistindo a um progressivo aumento da criminalidade, embora, algumas vezes, seja apenas mímica. Os crimes cruéis e violentos são apresentados pela media mainstream e por determinado estrato político como um fenômeno aterrorizante, fonte de insegurança, e indicam como causa essencial o tratamento benigno dispensado pela lei aos criminosos, que, por isso, não lhe têm respeito.

Essa propaganda maciça de fatos assustadores provoca na população um estado de medo, do qual se aproveitam movimentos políticos, pautados em um ideário do “bandido bom é bandido morto”, para se apresentar como detentores da solução. A vacina recorre à velha fórmula da repressão, ancorada no Direito Penal Máximo e no regime punitivo-retributivo, cunhado por Movimento de Lei e Ordem5.

Feitas as observações sobre a fundação e significação das forças policiais no Brasil e o contexto cultural que emoldura nossos dias, passa-se ao recorte da realidade da atuação das polícias na cena brasileira da atualidade.

Já não são exclusividade do Rio de Janeiro os confrontos violentos entre polícia e organizações criminosas armadas. Os últimos registros de confrontos deslocaram os olhares para o Nordeste do Brasil, pois são regiões periféricas da Bahia que recentemente ganharam visibilidade por conta dos violentos confrontos com múltiplas mortes.

Os registros de homicídios como indicador para traçar um mapa da violência no Brasil acabam por enviesar análises sobre políticas públicas, por conta da natureza dos homicídios, que tem particularidades que podem ficar encobertas tais como as motivações por trás dos confrontos com armamento de guerra.

Na Bahia e no Rio a perspectiva poderia ser considerada uma apropriação do determinismo geográfico de Ratzel6, considerada a ideia deturpada de ORCRIM como estrutura de poder, pois é nítido que se trata de controle de território.

Ao observar esse microcosmo verifica-se de forma mais evidente a relação que resume a atividade  policial às intervenções de natureza  bélica e que  tem marcado

4 Recorte Café Filosófico: O Ódio no Brasil. 2015 https://www.youtube.com/watch?v=d94cGNWacxE&t=2s

5 O aludido movimento ideológico propõe o Direito Penal Máximo, ou seja, sugere um alargamento da incidência do Direito Penal, fazendo com que penas mais severas sejam aplicadas, na mesma perspectiva de que as penas já existentes sejam agravadas.

6 “É preciso reconhecer o inegável caráter expansionista em suas noções, adjunto da importante consideração das características físicas do território (sempre associada a elementos, como por exemplo, a economia)…”. Friedrich Ratzel e o Determinismo Geográfico: a construção de um estigma.

profundamente o reconhecimento através da performance, pelo ideário de força e de virilidade, criando – ou aprofundando – um fosso entre o Estado e a população civil, ao mesmo tempo em que desperta nos operadores das agências da Segurança Pública visibilidade invariavelmente associada ao arquétipo do guerreiro viril e infalível.

Ressalte-se que essas características devem integrar a atividade policial por conta dos riscos e da alta letalidade que a caracteriza, mas não devem representar a centralidade do papel da polícia. Se a moldura legal prevista na Constituição Federal consagra o modelo bipartido de polícia, abandonado por outros países há mais de um século, a forma de adequar essas defasadas diretrizes às necessidades da sociedade brasileira é privilegiar atividades de prevenção geral e especialmente as ações preventivas orientadas por inteligência.

Um dos grandes problemas para a implantação de um modelo que privilegia a prevenção, buscando evitar os confrontos, sobretudo em áreas densamente povoadas está na hiperexposição promovida pela política do confronto como bandeira partidária, que tem nas redes sociais o veículo para a construção de representações do herói da atualidade. Há um estímulo à cultura do confronto como sinal de efetividade no combate ao crime. E essa cultura acaba reproduzida e reforçada nos processos de formação e aperfeiçoamento policial.

Esse deslumbramento pela performance vem determinando mudanças estruturantes na organização e distribuição das agências da segurança pública. A própria Polícia Rodoviária Federal (PRF), agência civil, que nasceu polícia das estradas7, cuja missão precípua já foi o patrulhamento ostensivo das rodovias federais precisou ressignificar seu papel e ampliar seu espectro de atuação especialmente diante do processo de urbanização das rodovias.

Por ter na capilaridade um de seus atributos, ao se ver inserida em espaços urbanos marcados pelo adensamento populacional e todos os problemas que decorrem desse processo a PRF vive um processo de adaptação aos novos anseios por segurança, que se notabilizam pela dicotomia entre o policiamento rodoviário tradicional, realizado nos interiores do Brasil e uma atuação mais incisiva e tensa nos grandes centros urbanos recortados por rodovias federais.

A instituição se apresenta como a face visível da segurança pública da União encravada nas cidades que crescem em torno da principal infraestrutura logística do

7 O trânsito, então regulado pelo Decreto de 1928, que criou a ‘polícia das estradas’, passou a obedecer às regras estabelecidas pelo Decreto-Lei nº 2.994, de 28 de janeiro de 1941, que instituiu o Código Nacional de Trânsito e criou os conselhos nacionais e regionais de trânsito, com participação ativa dos ‘Inspetores Gerais de Polícia’ e ‘Inspetores de Tráfego’. O dispositivo fora rapidamente alterado pelo Decreto-Lei nº 3.651, de 25 de setembro do mesmo ano, quando foi instituída, entre outras mudanças, a Carteira Nacional de Habilitação. Em agosto de 1946, com a publicação do Decreto-Lei nº 9.545, houve profundas mudanças na regulamentação da habilitação e exercício da atividade de condutor de veículos automotores.

país. A garantia da disponibilidade daquela que é considerada uma infraestrutura crítica8 defere à PRF caráter de agência de segurança multidimensional, na medida em tem como missões garantir a segurança viária, a segurança pública e a disponibilidade do modal prevalente no Brasil, por onde deslocam não somente pessoas em suas viagens de trabalho e lazer, mas também cerca de 70% da produção nacional e com ela o desenvolvimento daquela que atualmente é a 9ª maior economia do mundo, segundo o Fundo Monetário Internacional.

A atividade policial deve ser vista de forma integral e menos sacralizada, pois além de se tratar de mais um serviço público, não deve ser compreendida de forma verticalizada. A complementariedade entre as funções de prevenção materializadas nas atividades desempenhadas pelas polícias ostensivas e naquelas dedicadas à persecução criminal é a ordem que se impõe, uma vez que as distinções entre as polícias estão somente nos momentos de deflagração de uma ou outra função do Estado, se antes ou depois da lesão a algum bem jurídico tutelado.

A convergência entre as agências preventivas e repressivas deve ocorrer de forma permanente, pois é forçoso reconhecer a necessidade de envidar esforços de forma coordenada em atividade típica da cooperação interagências, para fazer frente ao avanço das redes criminosas sem olvidar que os confrontos devem ser vistos como extraordinários e não como um fim em si ou objeto de exaurimento da atividade de segurança. Trata-se apenas de um dos meios para garantir paz social.

O policiamento baseado na ostensividade, na medida em que transmite percepção de segurança e traz proximidade ao cidadão, por ser menos interventivo e se notabilizar como atividade dedicada a evitar a lesão apresenta-se como legitimador dessa prestação estatal e identifica a Segurança Pública como um ativo da sociedade.

8 As infraestruturas de comunicações, de energia, de transportes, de finanças, de águas, de defesa, entre outras, possuem dimensão estratégica, uma vez que desempenham papel essencial tanto para a segurança e soberania nacionais, como para a integração e o desenvolvimento econômico sustentável do País. Fatores que prejudiquem o adequado fornecimento dos serviços provenientes dessas infraestruturas podem acarretar transtornos e prejuízos ao Estado, à sociedade e ao meio ambiente.

Referências:

ANTUNES, Thiago Henrique Costa Simões. Friedrich Ratzel e o Determinismo Geográfico: a construção de um estigma. Espaço & Geografia, vol.24, n.1 (2021), 149:168 ISSN: 1516-9375.

ARAÚJO, João Marcello de. Los Grandes Movimientos Actuales de Politica Criminal (Aspectos). in “Boletin de lnformación dei Ministerio de Justicia”, ano XL, nº 1.439, p. 2.207, em 5-12-88, Madri.

BRASIL. Gabinete de Segurança Institucional. Segurança de Infraestruturas Críticas. Disponível em: <https://www.gov.br/gsi/pt-br/assuntos/seguranca-de- infraestruturas-criticas-sic>. Acesso em: 15 de out. de 2023.

BRASIL. Ministério BRASIL. DECRETO Nº 18.323, DE 24 DE JULHO DE 1928.

Portal        da        Câmara        dos        Deputados,        2021.        Disponível        em:

<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/ decreto-18323-24-julho- 1928-516789-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 15 de out. de 2023.

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Edição revista e ampliada. São Paulo: Todavia, 2019. 320.

DUARTE, Mauro Henrique Tavares; CURI, Vinícius Fernandes Cherem. Os influxos do Movimento Law and Order e The Broken Windows Theory no Brasil. Revista Liberdades. Edição nº 19 maio/agosto de 2015. Disponível em:

<https://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 15 de out. de 2023.

KARNAL, Leandro. Recorte Café Filosófico: O Ódio no Brasil. 2015. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=d94cGNWacxE&t=2s>. Acesso em: 15 de out. de 2023.

(*) André Luiz de Azevedo é policial rodoviário federal, desde 6 de julho de 1994.