Catarinense da gema e paranaense de coração, o caminhoneiro Jair José Pereira diz que pra ser caminhoneiro tem que derramar muitas lágrimas de sangue
O poliglota nascido em Santa Catarina e criado no Paraná, Jair José Pereira, de 49 anos, tem muitas histórias pra contar. Com 25 anos de estrada, o caminhoneiro resolveu mostrar como é sua vida na boleia.
A partir dessa ideia, ele pegou seu celular e começou a registrar tudo que vê pela frente. São cenas alegres, pitorescas e, também, algumas tristes. Mas, como ele mesmo diz: é a vida.
Pois bem, o Estradas.com.br bateu um papo com o dono do “Diário de Bordo de um Caminhoneiro”, canal que Jair José Pereira tem no Youtube, desde 2015.
Jair morou na Suíça por três anos e viajou por toda a Europa, mas sem caminhão. Em suas viagens a trabalho – e é o que mais faz – tem rotas para todos os cantos do Brasil.
Envolvido há mais de 25 anos com transporte em geral, Jair já foi motorista de ônibus urbano e rodoviário. Mas é o caminhão que lhe dá mais satisfação. Tanto que quase não sai de dentro dele.
Desde que começou a registrar sua vida diariamente, Jair vem conquistando seguidores de todas as partes do país. Atualmente, são mais de 500 mil inscritos em seu canal. O caminhoneiro Jair José se tornou uma celebridade, afinal, por onde passa ou quando estaciona seu bruto num posto, logo é reconhecido por várias pessoas, que pedem para tirar uma foto.
Das situações inusitadas a cenas do cotidiano, Jair vai contar um pouco de seu dia a dia nas rodovias do Brasil afora. Acompanhe a entrevista.
1 – Quando e como iniciou na vida de caminhoneiro?
Bom, eu iniciei como motorista profissional nos anos 90; depois tive outras profissões e acabei voltando para o caminhão novamente.
2 – Qual é a melhor parte de ser caminhoneiro?
É trabalhar sozinho, tranquilo sem ter uma rotina todos os dias e viajar por vários estados e outros países. Além disso, é ter um ganho maior que outras profissões que exigem mais estudos técnicos.
3 – E a pior?
São as condições de parada, onde não há locais adequados para descansar, e, quando tem, são muito caros. Outra situação ruim é o tempo para descarregar e carregar.
4 – Por que iniciou seu canal no youtube e como tem sido a experiência?
Eu iniciei o canal para mostrar um pouco às pessoas que estavam começando no caminhão; ensinar a elas que também têm dificuldades; mostrar os contratempos que eu tive, como: regular um freio, descer uma serra, preencher um tacógrafo, coisas que no meu tempo não tinha como buscar. Então, eu resolvi fazer os vídeos ensinando isso.
5 – O que aconteceu de mais gratificante como youtuber?
O youtube é gratificante pra mim porque é uma terapia. De certa forma, eu passo o tempo interagindo virtualmente com as pessoas e não me estresso. Não tenho pressa tanto pra descarregar e carregar. E se tornou pra mim uma brincadeira, um jogo; algo muito nesse sentido. E é divertido e me deixa bem.
6 – Qual sua prioridade no canal?
A prioridade do canal é divertir, ensinar, passar as dificuldades que a gente tem na estrada, as coisas boas etc. Mostrar um pouco do Brasil, os trechos, situações, locais de parada, local bom pra comer, local ruim, local de assalto, de roubo e assim por diante.
7 – Como é a relação com os seguidores?
Minha interação com os inscritos, com o pessoal da internet, do youtube, do facebook é maravilhosa. Eu encontro várias pessoas por todos os lugares que eu passo. O pessoal vai ao meu encontro nos pontos onde estou, tiram foto, interagem. É muito legal. Saber que pessoas que não têm nada a ver com caminhão, como advogado, juiz, psicóloga e também crianças, é muito gratificante. Para mim, é uma terapia muito grande e o que eu mais preservo são essas amizades virtuais. Eu acho que a interação com as pessoas é muito importante, muito mesmo, mais do que qualquer coisa. Infelizmente, não dá para interagir com todos, porque são mais de 1.200 mensagens que eu recebo por dia em várias outras plataformas. Mas, o pessoal me acompanha nos lugares onde estou quando faço o check in. Eles acabam indo me ver, dão presentes, conversam. Isso é ótimo.
8 – Quais suas três dicas de segurança mais importantes para os usuários das estradas, não importa o tipo de veículo que dirijam?
São as mesmas que todo mundo fala: manter distância, não ultrapassar em locais proibidos e manter a manutenção do veículo. Embora, hoje em dia ninguém se preocupa com isso. A pessoa quer simplesmente tocar a viagem. Agora, com a chegada do fim de ano, é muita correria, gente pra todo lado, uma loucura. As pessoas andam em alta velocidade e acabam causando muitos acidentes. Mas as regras de segurança são essas mesmas: manter distância – porque você tem tempo de reação – não ultrapassar em locais não permitidos – que é um dos maiores problemas dos motoristas – e dar manutenção no veículo, além de não se distrair com qualquer coisa no caminhão ou no carro.
9 – Como é ver companheiros de estrada morrendo por irresponsabilidade de outros motoristas?
É revoltante. Mas eu sempre digo que a gente não dirige só pra gente. Eu já tive vários companheiros que morreram por imprudência de outros. É lamentável, mas a vida é feita de escolhas. Então, corremos riscos o tempo todo. Qualquer pessoa pode morrer escorregando dentro do banheiro batendo a cabeça no vaso e morrendo. É lamentável, mas infelizmente, se você não fizer a sua parte no trânsito, nunca vai melhorar.
10 – Na hora de carregar e descarregar você acha que os caminhoneiros são respeitados e oferecem condições dignas?
Muitas empresas, às vezes, começam oferecendo bons benefícios aos motoristas. Mas muitos motoristas estragam tudo. Porque um cuida e mais da metade estraga tudo. Há situações nas quais a gente vê num pátio, onde o motorista defeca embaixo da carreta, rouba chuveiro, rouba torneira, quebra, defeca em cima de tampa de vaso – porque não tem papel higiênico – joga as coisas no chão, discute em portaria, briga e joga a carga no chão. Por conta disso, às vezes, as empresas preferem deixar o mínimo possível, até por conta da lei para evitar de ter gastos maiores. Elas chegam num ponto que cansam de repor coisas em benefício do motorista. Mas, tem suas exceções; têm empresas que também judiam pra caramba e não está nem aí com os motoristas, desrespeitam mesmo. Mas são poucos casos nos que lugares que eu vou.
11 – Depois da exigência do exame toxicológico você acredita que muita gente deixou de usar drogas?
Bem, depois do exame toxicológico eu acredito que melhorou bastante, sim. Eu nunca tive contato direto com motoristas drogadas. Mas dificultou bastante. As empresas fizeram um filtro muito grande nisso aí, e pode ter certeza que diminuiu bastante. Se parou de fumar droga, eu não sei. Isso aí é de cada um. As pessoas acabam, às vezes, dando um jeito pra tudo; o ser humano dá jeito pra tudo. Mas, que ficou mais difícil pra quem é usuário de droga ser contratado por uma grande empresa onde é utilizado o exame toxicológico. Então eu acho que melhorou, de certa forma, principalmente com o estabelecimento de carga horária, tudo isso aí ajudou bastante.
12 – Como é a relação com a família ficando tanto tempo fora de casa?
Minha relação com a família é praticamente só com a minha mãe. Sou separado há muito tempo e meus filhos são criados, crescidos e independentes. Quando é possível, nos vemos, mas cada um toca sua vida. Eu vivo na estrada. Quando passo pela minha cidade de origem vou na minha mãe e almoço com ela.
13 – Em que mídias as pessoas podem ver seus vídeos e entrar em contato?
Bom, eu tenho várias mídias e fico praticamente conectado 24 horas por dia. Tenho minha fanpage no facebook, no instagram, no Twitter e meu e-mail pra contatos comerciais, que é: [email protected]. Meu canal no youtube é “Diário de Bordo de um Caminhoneiro”. Em todas as redes sociais, o mesmo endereço: “Diário de Bordo de um Caminhoneiro”, é fácil de achar.
14 – Qual a situação mais inusitada que já presenciou ou vivenciou nas estradas?
Uma cena que sempre me recordo é de um carro pegando fogo com cinco pessoas, bem na minha frente, praticamente a oito, nove metros. Eram japoneses. Isso aconteceu num acidente na Régis Bittencourt. Vi as cinco pessoas agonizando, trancadas dentro do carro e queimando, pegando fogo no cabelo, na porta, foi muito horrível. É uma situação muito triste na qual você assiste tudo sem poder fazer qualquer coisa. Foi uma das situações mais desagradáveis. Além da morte de companheiros, que sempre chocam a gente. São cenas bem tristes.
15 – As estradas são bem sinalizadas?
Estrada sinalizada é estrada pedagiada. Tirando isso, a maioria fica no sul e em São Paulo, onde as são boas. Agora, as rodovias secundárias da região nordeste são bem complicadas. Até têm rodovias boas, mas normalmente sempre são pedagiadas e muito estreitas, onde não comporta mais o grande fluxo de caminhões; um exemplo é a Rio-Bahia, no trecho de Jequié a Jaguaquara, onde constantemente têm acidentes, embora sejam sinalizadas. Claro que no Sul do Brasil também tem, como em São Paulo, mas são rodovias de pouco trânsito de caminhão. As vias de tráfego mais intenso de caminhões normalmente são bem sinalizadas.
16 – Em termos de conservação, onde estão as piores estradas?
A conservação das rodovias é assim: hoje em dia muitas rodovias, embora sejam pedagiadas, são péssimas. Um exemplo é a BR-040, a ViaBahia e a Régis Bittencourt. São rodovias pedagiadas, mas péssimas. Muito tem que ser feito, porque o tráfego aumenta ano após ano e a gente acaba ficando sempre no passado. Rodovias de 50, 60 anos que só ficam na recapagem. A deterioração da malha viária tem crescido muito ultimamente. As melhores rodovias evidentemente são no estado São Paulo e pedagiadas, como sempre. Já as piores, infelizmente, ficam no Nordeste.
17 – Como o senhor vê a PRF, atualmente?
A PRF é como eu sempre digo: são humanos, e lidar com gente é complicado. Eu procuro andar sempre certinho, mas, às vezes, como em todo âmbito, política, igreja, sempre existe a corrupção. Eu acho que deveria ter um pouco mais de bom senso, orientação e menos punição. Mas, se com eles tá ruim, imagina sem eles. Seria pior. Na maioria das vezes, a Polícia Rodoviária Federal tem sido um grande auxilio para os motoristas. As pessoas sempre procuram ver só o lado negativo e nunca o lado positivo. Eu sou uma pessoa que agradeço muito pela Polícia Rodoviária Federal. Embora tenha sempre um joio no meio do trigo, mas isso acontece em todas as profissões, assim como também tem motorista que não presta pra nada. Se não houver uma fiscalização, se não houver uma regra, vira bagunça.
18 – Por que ocorrem tantos acidentes nas estradas brasileiras?
Motorista brasileiro é tudo doido. Ninguém respeita ninguém, ultrapassa em alta velocidade em lugar que não permite, não mantém a distância, é uma loucura. As pessoas são doidas no trânsito. Só quem viaja por esse Brasil afora, sabe quanto que esse povo não respeita o trânsito. É ultrapassagem pelo acostamento, se você tá ultrapassando um caminhão, o outro passa você pelo acostamento pelo outro lado. Ninguém respeita, anda colado, não mantém distância. Quando chove, é uma loucura. Você só vê caminhão jogado no meio do mato, carro. É imprudência do ser humano. Não tem outra palavra: 99% imprudência, isso é real.
19 – O Poder Público tem ajudado os caminhoneiros?
O poder público tem medo dos caminhoneiros mas é uma classe muito desunida, já foi unida, hoje não é mais. De certa forma, quando acontece alguma coisa grande, daí eles olham com outros olhos, mas logo são esquecidos. O poder público nunca apoiou e não vai dar muita ênfase ao caminhoneiro. Ele deveria cobrar mais das empresas para agilizarem o processo da descarga com um pátio decente. Isso deveria ser uma regra como acontece em outros lugares que têm regras, um estacionamento do shopping por exemplo. O governo não se importa muito com a gente. Só se importa quando percebe que alguma coisa vai prejudicá-lo. O poder público usa a gente como massa de manobra e sempre foi assim. A política é se manter no poder.
20 – Parte da população não vê os caminhoneiros com ‘bons olhos’, por que?
Eu não acho que boa parte da população veja o caminhoneiro com maus olhos. É porque é uma grande classe, né, e como polícia, bombeiro, político, padre… Sempre que um faz uma coisa errada, ele é julgado por um todo, né. Eles não falam o fulano de tal Adeilton da Silva tombou o caminhão. Eles dizem que o caminhoneiro tava bêbado e tombou o caminhão. Eles generalizam tudo. O caminhoneiro tava bêbado, generaliza. Igual quando um cara é um policial; ele não vai falar o nome da pessoa, ele fala: policial bêbado mata a esposa. Pronto. Daí generaliza, classes, grupos de pessoas que são grandes, são julgados pela sua grandiosidade, pelo seu grupo e nunca por um indivíduo só. Então, por isso que, às vezes, alguns ignorantes julgam a classe toda por uma minoria.
21 – O que é preciso ter para se manter na estrada sem grande estresse?
Eu já falei em vários vídeos que para não se manter estressado nas estradas, basta aproveitar a viagem, olhar a paisagem, se divertir, botar uma boa música, esquecer o carregamento, o horário, os problemas. Estressado, nada será resolvido. Só vai piorar. Então, se é um problema é porque tem uma solução.
22 – Ainda compensa ser caminhoneiro no Brasil?
Claro que compensa, apesar de ser bastante explorado, compensa ser caminhoneiro no Brasil. Eu ganho mais do que minha irmã que tem duas faculdades. Mas, por outro lado, eu não tenho vida social. O motorista precisa saber que terá que se abdicar de muitas coisas e tem que gostar disso. Muita gente venera o caminhão e gosta de ser caminhoneiro. Então, eu acho que, de certa forma, compensa. É preciso melhorar, mas, ainda assim, é uma profissão que muita gente almeja e como diz: tá ruim mas tá bom né.
23 – Qual a dica para quem quer iniciar na carreira?
Não existe dica pra iniciar na carreira de caminhoneiro. Caminhoneiro não é uma carreira. Caminhoneiro é uma coisa que vem de dentro da pessoa; a pessoa vai gostando daquilo. Não é ir lá e fazer um concurso para ser policial ou fazer um treinamento. Ser caminhoneiro é difícil. Mas é como eu digo: é uma profissão diferente, porque você tem que abdicar de muitas coisas; primeiro você tem que saber que vai ficar longe dos filhos, da esposa e dos amigos. A estrada foi feita pra poucos. Muitos começam e acabam não se adaptando. É uma profissão que demora anos para você ser moldado. Não é em cinco, seis meses que você pode ser chamado de caminhoneiro; tem que derramar muitas lágrimas de sangue, muito suor e como a gente diz: comer muito asfalto, por muito tempo pra ser digno de ser chamado de caminhoneiro.
24 – O que poderia ser feito para melhorar a vida dos caminhoneiros?
Primeiro, o caminhoneiro tem que querer melhorar as coisas para ele; aprender a não roubar pequenas coisas; não sujar onde ele para o descanso e respeitar sua profissão e seus colegas. A vida de caminhoneiro é o que ele faz. Quando oferecem algum conforto pra ele, é preciso dar valor e não estragar. Tem que cuidar e respeitar o espaço que foi reservado pra ele. Um deve cuidar do outro. É como no quartel, se no plantão apareceu uma mancha na porta do banheiro, toda companhia que estava de plantão vai ter que pagar uma lata de tinta. Então, a vida do caminhoneiro pra melhorar tem que começar por ele mesmo; ele tem que melhorar.
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