Mestre e Doutor em Toxicologia, Rafael Menck de Almeida Foto: Arquivo pessoal

Após o veto do presidente Lula à exigência do exame toxicológico de larga janela — conhecido como “teste do cabelo” — para candidatos à primeira habilitação, o tema continua em pauta, já que o veto ainda pode ser derrubado pelo Congresso.

Para contribuir com uma análise técnica e científica da questão, segue artigo do Mestre e Doutor em Toxicologia, Rafael Menck de Almeida.

Artigo: Meus heróis morreram de overdose…

**Quando a conveniência atropela a ciência**

O veto que desprotege milhões

Em 27 de junho de 2025, o Presidente da República vetou o trecho do projeto de lei que tornaria obrigatório o exame toxicológico de larga janela na primeira habilitação. O argumento? Que isso “aumentaria os custos” e “estimularia a condução sem habilitação” e “reduziria o acesso a primeira CNH”.

Mas a pergunta que fica é: quanto custa uma vida? O mesmo governo que diz se preocupar com a segurança nas estradas veta a única medida que comprova se o futuro condutor faz uso regular de substâncias psicoativas. E faz isso ignorando por completo os dados técnicos apresentados por órgãos especializados, pela comunidade científica e pelos próprios exames realizados em larga escala no Brasil, já adotados com sucesso em outras categorias profissionais e veiculares.

É um veto que não contesta a ciência, apenas despreza sua importância. E o resultado é claro: mais pessoas habilitadas sem qualquer triagem sobre o uso de drogas, mais riscos nas estradas, mais vítimas farão parte das estatísticas.

Ao vetar a exigência do exame toxicológico na primeira habilitação, o governo sinaliza que o acesso irrestrito à CNH é mais importante do que a segurança coletiva. Essa escolha não elimina o risco — apenas o oculta e no final, quem paga com a vida são os que não têm voz nas decisões políticas: as vítimas do trânsito.

Os exames toxicológicos ao redor do mundo são utilizados como medida de prevenção. Estes são ferramentas para monitorar ambientes sensíveis como por exemplo, a aviação civil, transporte rodoviário, forças armadas, bem como programas de reabilitação e reeducação além de outros. No entanto, muitas vezes, a ausência de informações claras conduz ao senso comum de que esse controle não é importante. Para isso, muitos membros recorrem à desinformação ou à manipulação de dados conforme seus interesses.

**A aplicação do exame toxicológico precisa ser compreendida, não distorcida**

A obrigatoriedade do exame toxicológico na 1ª habilitação não é punição, é sim um processo de triagem. Assim como médicos, professores, babás e motoristas escolares precisam estar aptos física e psicologicamente, por que um novo motorista, que dividirá a via com todos, não deveria? Com adequado controle, todos estariam mais protegidos, com todos passando pelas mesmas ruas e rodovias que tantos tratam apenas como “meios de locomoção”. Para motoristas profissionais, esse é o ambiente de trabalho. E o trânsito, o campo onde vidas são postas em risco todos os dias.

Neste sentido, o exame toxicológico além da sua utilidade natural também desempenha um papel simbólico, com a intenção de educar. Assim, o teste toxicológico indica ao futuro condutor que dirigir não é um direito adquirido por idade, mas um privilégio concedido a quem demonstra responsabilidade plena. A pedagogia do trânsito começa antes da carteira, e o exame é uma ferramenta de conscientização.

**Manipulação de dados: o truque mais antigo**

Críticos da medida citam dados como “9,3% de motoristas com drogas na urina” ou “5,2% positivos na saliva”. No entanto, estas estatísticas vêm de estudos com número de amostras irrisórias (entre 452 e 762 motoristas),  realizados há mais de 10 anos em trechos localizados somente no Estado de São Paulo.

Esses dados não representam o Brasil. O uso seletivo dessas informações apenas fortalece narrativas de conveniência, não a ciência.

Desta forma, chama a atenção o fato dos críticos do exame toxicológico sequer se preocuparem em atualizar os dados que utilizam para atacar a sua eficácia. Estes ignoram que, desde a publicação da RDC 52/2011 pela ANVISA, a comercialização de medicamentos à base de anfetaminas foi proibida no Brasil.

Essa medida reduziu drasticamente a disponibilidade dessas substâncias no mercado formal, o que, por consequência levou à queda dos resultados positivos nos exames toxicológicos para anfetaminas.

Esses dados foram documentados em estudos revisados por pares e publicados em revistas científicas da área. Em resumo, usar argumentos como esse contra a aplicação do exame é, no mínimo, desonesto ou tecnicamente raso.

A redução nos laudos positivos não indica falha do exame, mas sim o sucesso de uma política pública sanitária que retirou do mercado drogas com alto potencial de abuso. Negligenciar esse contexto vai além de um erro técnico — é uma omissão que compromete a credibilidade da discussão.

 


 

 

Fonte: Bombana et al, 2017; Yonamine et al, 2013; Pechansky et al,  2010; Silva et al, 2003; Sinagawa, D. M., 2015; Leyton et al, 2011; Takitane et al, 2013; Peixe et al, 2012; Oliveira  et al, 2013; Takitane et al, 2016; Costa et al, 2021.

 **A diferença entre matrizes: ciência, não achismo**

Cada matriz biológica tem função distinta. A urina revela uso recente; a saliva, uso muito recente — mas não confirma intoxicação ativa. Para isso, é necessário o exame de sangue. Já o cabelo mostra o padrão de uso ao longo de semanas ou meses. Isso não é opinião: é padrão internacional de toxicologia.

Nos primeiros 200 mil motoristas testados em todo Brasil, utilizando a matriz do cabelo, 3,7% foram positivos para drogas. E o mais assustador: 85% usaram cocaína. Esses dados, enviados ao SENATRAN e ao Ministério do Trabalho, não são números — são sirenes ligadas no trânsito.

Estamos falando de 7.400 motoristas sob efeito de drogas — número maior que o total de participantes somados de todos os estudos brasileiros sobre o tema.

1 cm de cabelo equivale, em média, a 30 dias de histórico de uso. Logo, exames capilares são capazes de identificar se o candidato à CNH mantém um comportamento contínuo de uso de drogas — um risco inaceitável para quem vai assumir o volante.

**E quanto à cannabis medicinal?**

Outra falácia comum: “o exame vai prejudicar quem faz uso medicinal de cannabis”. Não é verdade.

A RDC 327/2019 da ANVISA, que aborda sobre produtos a base de cannabis, determina que o paciente que irá utilizar esses produtos, assine um termo de consentimento em que se compromete a não dirigir ou operar máquinas durante o uso. Portanto, se o exame toxicológico flagrar usuário de medicamento à base de cannabis, a restrição já é legalmente prevista, independentemente do laudo toxicológico. A ANVISA definiu que: quem estiver sob tratamento com cannabis,  não pode dirigir.

A prescrição de uma substância psicoativa não transforma um risco em segurança.
O efeito sobre o cérebro permanece. E a responsabilidade por dirigir sob esse efeito também.

**O custo é alto? E a vida, vale quanto?**

O valor atual do exame toxicológico é de aproximadamente R$ 120 — menos do que um exame médico para a CNH (R$ 122,17 em São Paulo). Ou, se preferir, menos de 20 litros de diesel.
Ainda assim, esse custo é amplamente contestado por quem parece não considerar o que está em jogo: vidas.

**Liberdade individual ou responsabilidade coletiva?**

O Código de Trânsito Brasileiro proíbe dirigir sob o efeito de álcool ou drogas. Ele não impede ninguém de usar substâncias — impede apenas que se coloque outras vidas em risco.

O mesmo raciocínio se aplica a outras profissões: não é aceitável um piloto de avião, um cirurgião cardíaco ou uma professora de educação infantil fazer uso de substâncias psicoativas sem controle. Por que seria diferente com quem dirige um automóvel por vias compartilhadas por todos?

**Conclusão: segurança não se improvisa**

Exigir o exame toxicológico de larga janela na primeira habilitação não é excesso — é o mínimo. É uma medida de proteção social que antecipa o risco, educa para a responsabilidade e salva vidas antes mesmo que se percam. Ignorá-la não é apenas um erro técnico — é um retrocesso institucional disfarçado de sensatez.

Tentar enfraquecer essa exigência com discursos populistas, dados desatualizados ou argumentos econômicos é dar um verniz de racionalidade a uma escolha que coloca milhões em perigo.

Vetos podem ser burocráticos — mas as mortes que eles silenciam são reais, são humanas, são irreversíveis e causam muita dor.

Abrir mão da triagem toxicológica na origem da habilitação é como permitir que se entre em campo sem saber quem está armado. É ceder à conveniência política e abdicar da responsabilidade pública. O Brasil já viu o custo disso: está estampado nas cruzes à beira das estradas.

Não é romantizando imprudência que se constrói um país mais seguro. São os condutores conscientes — e não os “heróis” movidos por estatísticas manipuladas — que garantem o retorno seguro para casa.

E por isso, reafirmo:

Meus heróis, os verdadeiros, são os que voltam para casa no fim do dia

Rafael Menck de Almeida
Farmacêutico, Mestre e Doutor em Toxicologia pela Universidade de São Paulo-USP.
Diretor Presidente da LATOX – Laboratórios Associados em Toxicologia.

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