André Azevedo analisa o papel da PRF na sociedade brasileira
Neste artigo, André Azevedo,  Mestre em Segurança Internacional e Policial Rodoviário Federal, aborda com muita lucidez qual a principal atribuição da PRF . O tema é particularmente importante nesta hora em que a instituição sofre grande desgaste por questões políticas do passado recente.

Por que não tentar ser brilhante no básico?

O Brasil é país das inversões, das gambiarras sempre em busca de um salvador. É a essa mania nacional de procurar pelo milagre do dia, pelo imprevisto salvador que o historiador Sérgio Buarque de Holanda, em seu clássico livro Raízes do Brasil, de 1936, chama de “bovarismo”.
 Para Buarque de Holanda o conceito se refere a “um invencível desencanto em face das nossas condições reais”. O termo tem origem na famosa personagem Emma, da obra de ficção Madame Bovary, escrita em 1857, por Gustave Flaubert e que define justamente certa alteração do sentido da realidade, quando uma pessoa se considera outra, que não é.

O estado psicológico geraria uma insatisfação crônica produzida pelo contraste entre ilusões e aspirações e, sobretudo, pela contínua desproporção diante da realidade. Imagine-se o mesmo fenômeno passado do indivíduo para uma instituição, que insiste em se conceber sempre diferente daquilo que é a sua essência ou aguarda que um inesperado – um presidente ou um ministro – lhe altere a natureza.

A Polícia Rodoviária Federal (PRF), além de figurar na moldura legal da Segurança Pública (art. 144, §2º CF/88) é o único órgão policial com atribuição originária no Código de Trânsito Brasileiro (CTB).

E isso não é sem razão, pois o legislador lhe teria confiado a missão de garantir a segurança viária nas rodovias federais, que constituem o modal prevalente no Brasil e o principal eixo de desenvolvimento da nação.

É pelos 75 mil quilômetros de rodovias federais que escoam cerca de 70% das riquezas produzidas. A missão precípua da PRF é assegurar a fluidez das vias, garantindo que as pessoas e bens que circulam o façam em segurança.

Ou seja, o brilhantismo referido no título seria atuar antes de tudo na garantia da disponibilidade dos principais corredores viários do país. É esse compromisso que dá sentido à existência dessa instituição, que é a mais capilar dentre todas as polícias do país.

O básico que também inaugura a abordagem não significa simplório, pois essa atribuição dialoga com temas estruturantes ligados ao sistema logístico nacional, como o Custo Brasil, que interfere diretamente na competitividade do setor produtivo.

Outra particularidade que se aloja no centro desse debate é que a PRF é a única instituição policial da União que, através do trânsito, tem contato direto com o cidadão. Seja para fiscalizar, seja para educar, prestar um auxílio ou até mesmo para resgatar de um acidente ou das mãos de grupos criminosos.

Adaptando a visão trazida por Sérgio Buarque de Holanda, ouso afirmar que a PRF tem desenvolvido um traço de bovarismo, pois conheceu nos últimos dez anos um crescimento extraordinário, especialmente se identificando como uma polícia de enfrentamento ao crime.

A despeito de reconhecer a necessidade dessa expansão, os recursos normativos nessa temática, ainda apresentam fragilidades que precisam ser consideradas, tais como a ancoragem dessas atribuições estarem previstas em decretos e portarias que carecem tanto de densidade quanto de estabilidade jurídica.

Temas estruturantes do conjunto de competências como as que enredam a área da Segurança Viária, a qual apesar dos inúmeros e reconhecidos ganhos sociais, tem em um certo mal-estar e hesitação castigado o cotidiano nacional com uma incômoda estabilidade nos últimos 4 anos nos índices de mortes e lesões permanentes, que já desafiam as metas da 2ª Década da ONU.

O “Bovarismo” serve, ainda, para nomear um mecanismo muito singular de evasão coletiva, que permitiu ao longo dos mesmos dez anos usados no recorte da abordagem verificar que a PRF escolheu recusar a imagem de uma polícia real, com atribuições sólidas e imaginar uma instituição diferente do que é, já que essa PRF real não seria, por exemplo, “instagramável” e por isso não satisfaria as demandas de uma “sociedade mais moderna”.

Esse traço deve ser trabalhado na academia (UNIPRF) e revertido em homenagem aos princípios da legalidade estrita, da eficiência e do óbvio anseio da sociedade por ter na vigilância e na ostensividade a desejada sensação de segurança durante suas viagens. Aqui é importante sublinhar que a assertividade nas abordagens não concorre com a ostensividade do patrulhamento.

Entre o que se é e o que se acredita ser, a PRF tenta parecer um pouco de tudo. Gênero de deslocamento tropical do famoso “ser ou não ser”, na gloriosa e quase centenária polícia cidadã parece que “não ser é ser”.

Ou então, parafraseando Paulo Emílio Sales Gomes, essa seria a penosa construção da nossa essência policial, que se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro.

O conceito de “bovarismo” lança luz sobre esse traço de comportamento do “guarda” de olhar para o espelho e se enxergar sempre diferente, reproduzindo a passagem narrada noutra obra, O espelho, de Machado de Assis, de 1882.

É como se a PRF, personificada no alferes Jacobina, se olhasse no espelho e percebesse que a imagem ali refletida estava corrompida e difusa. Não conseguindo enxergar a si mesma com nitidez resolve vestir sua farda e olhar-se no espelho, como se precisasse (re)construir a sua “alma exterior”, para preencher a sua “alma interior”.

Em vários contextos da rica história da PRF, polícia mais antiga da União, esse tipo de construção idealizada transformou-se num “fermento”, que tem definido a maneira de (re)construir a identidade da instituição.

Ainda considerando as ambiguidades constitutivas dos diversos decretos, portarias e planos estratégicos, que reforçam a crise de identidade na PRF, importa destacar que as outras agências policiais também sofrem com a fixação pela estética e pela atuação performática.

Até mesmo as agências policiais que têm na “não-ostensividade” sua principal característica é possível ver tentativas de construção de identidade visual ou até mesmo o emprego de certo padrão de vestimenta, como se fossem uniformes. Tudo para produzir no espelho reflexo distinto daquele que a sociedade deveria enxergar.

É a tal centralidade dos candidatos a salvador exaltados pela sociedade brasileira, que sob influência de um Estado Policial, acaba revigorando o estereótipo do justiceiro, que mantém a atividade policial no automatismo e na obsolescência, afastando-se da sua vocação de atividade científica, que carece de método e, especialmente, de controle.

As competências não são fenômenos estanques e muito menos atemporais. E isso legitima a busca por ampliação da atuação de cada uma das agências da Segurança Pública, notadamente a PRF, pois representam respostas dinâmicas, políticas e flexíveis, uma vez que reagem e negociam diante das diversas situações.

Nada de errado com essa disputa por espaço ou mesmo com a convergência para buscar resultados comuns, pois integram a normalidade weberiana da burocracia. Louvável a atuação em cooperação com outras agências para, por exemplo, o combate à redução de trabalhadores à condição análoga a de escravidão, o resgate crianças e adolescentes vítimas da exploração sexual ou o combate aos ilícitos ambientais, dentre outros, que não se referem diretamente à segurança viária, mas tem na rodovia a conexão para a perpetração.

O erro estaria no fato de se preferir abraçar a ideia de que a estética e a performance fariam parte das práticas estruturantes e formariam uma espécie de éthos institucional. Ao concordar com essa premissa, se poderia concluir que a PRF vem se notabilizando como a polícia do improviso que dá certo. O risco é permanecer amorfa ou em um constante processo de reconstrução, que afeta diretamente o seu reconhecimento enquanto instituição.

O diagnóstico tenta iluminar as razões que motivam essa resistência em compreender que ser brilhante no básico, ou seja, naquilo que é a missão precípua defere vigor institucional, fortalece o alicerce, aumenta as possibilidades de expansão com mais consistência, além de constranger os agentes políticos a nos valorizar e, de quebra, pode nos livrar de desgastes que podem comprometer a condição inegociável da PRF de órgão de Estado e, portanto, um ativo da sociedade.

André Luiz de Azevedo
Policial Rodoviário Federal
Mestre em Seguridad Vial y Trafico (UC3-Madri)
Mestre em Segurança Internacional e Defesa (ESG)
Ex-Coordenador-Geral de Segurança Viária
Docente na Pós-Graduação em Ciências Policiais (UNIPRF)

¹ Custo Brasil é a expressão usada para se referir a um conjunto de dificuldades estruturais, burocráticas, trabalhistas e econômicas que atrapalham o crescimento do país, influenciam negativamente o ambiente de negócios, encarecem os preços dos produtos nacionais e custos de logística, comprometem investimentos e contribuem para uma excessiva carga tributária. A estimativa é que o Custo Brasil retire R$ 1,5 trilhão por
ano das empresas instaladas no país, representando 20,5% do Produto Interno Bruto (PIB).
² A Organização Mundial da Saúde (OMS) deu início em Genebra à Década de Ação pela Segurança no Trânsito 2021-2030, com a ambiciosa meta de prevenir ao menos 50% das mortes e lesões no trânsito até 2030. O organismo internacional e as comissões regionais da ONU, em cooperação com outros parceiros da UN Road Safety Collaboration, desenvolveram um Plano Global para a Década de Ação.

Referências:

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