Imagine um policial que não pode prender, um motorista proibido de dirigir ou uma professora sem direito de reprovar. Em situação semelhante, vivem os fiscais de 9 das 32 cidades mineiras que já criaram seus órgãos de trânsito. Em função de um impasse com a Secretaria de Estado da Fazenda (SEF) e a Polícia Civil, eles são proibidos de aplicar 62 tipos de multa, livrando infratores de punição. Para fazê-lo, as prefeituras teriam que assinar um convênio, que lhes permitiria emitir autuações que, por lei, são de competência exclusiva de órgãos estaduais, como a Polícia Militar. Mas a maioria dos municípios se nega a fechar o acordo, alegando cobranças abusivas. Por causa da burocracia, há casos em que condutores alcoolizados ou flagrados sem habilitação ficam sem corretivo.

A legislação brasileira tipifica 252 multas. Mas a obrigação de aplicá-las é dividida entre municípios e estados, como prevê a Resolução 66 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). Enquanto 12 infrações são de competência mista, as demais são exclusividade de cada parte. Aos agentes contratados pelas prefeituras, cabe punir quem estaciona em local proibido, avança sinal ou abusa da velocidade, entre outros. Os demais devem penalizar quem dirige bêbado, sem carteira ou omite socorro às vítimas de acidentes. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) diz que só por meio de parcerias um órgão pode invadir a área de atuação do outro.

Em Minas, a Secretaria da Fazenda delegou à Polícia Civil, em 1998, a tarefa de firmar os convênios. Inicialmente, quase todas as cidades aderiram. A partir de 1995, no entanto, a mudança das regras para repartir o dinheiro das multas surpreendeu os municípios. Além de exigir 50% do valor arrecadado, o estado criou uma taxa de R$ 16,92 por autuação emitida, a título de cobrir gastos com processamento e acesso ao banco de dados do Departamento de Trânsito de Minas Gerais (Detran-MG).

Segunda maior cidade de Minas, Contagem, na Grande BH, faz vista grossa a vários tipos de infração há dois anos. Quando flagrado por agentes da Autarquia Municipal de Trânsito e Transporte (Transcon), o infrator não leva multa por andar em veículo não-licenciado, com pintura alterada, sem placas ou equipamentos obrigatórios, como o cinto de segurança. O mesmo ocorre com os PMs, que não punem quem derrama combustível na pista, invade cruzamentos ou faixas de pedestres. Exceto os comandos educativos, as blitzes conjuntas foram canceladas.

O superintendente da Transcon, Hermiton Quirino, afirma que a situação favorece a impunidade e, em conseqüência, a violência no trânsito. Só no trecho da Via Expressa, entre a estação de metrô do Eldorado e a Avenida João César de Oliveira, foram registrados, entre setembro do ano passado e março de 2007, 42 acidentes. “Somos obrigados a não lavrar as multas, porque, se o fizermos, elas podem ser anuladas na fase de recurso”, lamenta, acrescentando que a proposta do estado é inaceitável: “A taxa de processamento é alta. É cobrada mesmo quando esse trabalho é feito pelo município ou o motorista deixa de pagá-la. Além disso, o acordo não prevê compensações pelo uso do nosso pátio de apreensão, usado pela Polícia Civil e a PM”.


Constrangimentos

Nas ruas, o problema cria uma série de constrangimentos para os 30 fiscais municipais. É o caso de Mariele Marília Carlos, que não raro tem que livrar a cara de alguém. “Quando se trata de um condutor inabilitado, procuro chamar a polícia para tomar as providências. O problema é que, em alguns casos, ela demora muito ou não vem. Há situações em que o motorista foge e não posso fazer nada”, conta.

A situação se repete em Itabira, Lavras, Matozinhos, Santa Luzia, Timóteo e Três Corações. Em Varginha, um dos maiores municípios do Sul de Minas, a burocracia também dá salvo-conduto aos condutores mais abusados. “Até faríamos o convênio, se o acordo estipulasse menos obrigações. Gostaríamos de ter uma abrangência e uma agilidade maior na fiscalização, mas, do jeito que a proposta foi feita, vamos perder dinheiro e temos muitas responsabilidades, como a sinalização e a pavimentação das ruas.”, alega o chefe do Departamento Municipal de Transporte e Trânsito (Demutran), Eduardo Sepine.

O perito de trânsito Marco Antônio de Melo Soares, da Gerência de Contratos e Convênios da Polícia Civil, informa que o Tesouro Estadual está fazendo estudos para rever a taxa, que deve ser reduzida para estimular a adesão dos municípios. Segundo ele, o assunto será rediscutido, em breve, com os prefeitos e secretários de transporte. A coordenadora de Infrações e Controle do Condutor do Detran-MG, delegada Andréa Bravo, esclarece que a cobrança foi criada para cobrir as despesas com o banco de dados, que guarda informações sobre os motoristas mineiros. “O acesso é feito sempre que uma autuação é emitida e o departamento gasta com isso. Por isso, o convênio prevê o pagamento mesmo que o processamento seja feito pelo município e o motorista esteja inadimplente”, justifica.