Em seu terceiro encontro com a morte, Aranha descia a Serra Gaú­cha rumo a Caxias do Sul. Súbito, apagou e sonhou que dirigia a carreta com as luzes apagadas. Deses­perado, acendia e apagava os faróis. Acordou num golpe de sorte – diz ele que tocado por Deus –, antes de se espatifar num precipício ou levar o carro que vinha pela frente.

Acabava em pesadelo o efeito do Desobesi, um dos medicamentos à base de anfetaminas usados por caminhoneiros para forçar a insônia. Diante dos efeitos já fracos, ele está prestes a se somar aos colegas que trocaram o rebite pela cocaína para ficar mais tempo acordado na estrada. Só estará trocando um problema por outro maior.

Eles são muitos, só têm a Lua por companheira e estão sempre em luta contra o tempo. O Brasil tem 2,5 milhões de caminhoneiros, 700 mil deles pegam a estrada todos os dias tendo às mãos mais de 40 toneladas. Levam na carroceria 6% do Produto Interno Bruto do país, mas deixam no asfalto as marcas de uma tragédia expressa em números. Pelo menos um terço deles costuma dirigir sob efeito de drogas lícitas ou ilícitas, recurso cada vez mais usado para fazer render a viagem para compensar o baixo preço do frete e o exíguo prazo de entrega. O trecho é longo e o tempo, escasso. De cara limpa seria impossível cumprir a missão.

Estudos confirmam a troca do rebite por drogas mais pesadas. Em setembro, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo encontrou substâncias químicas na urina de 6% dos 305 caminhoneiros examinados em estradas do Rio e São Paulo. Quatro haviam usado maconha, 10 consumiram cocaína e 11, anfetaminas. Em 2008, o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Rodoviária Federal (PRF) constataram que três de cada dez caminhoneiros trafegam pelo estado de Mato Grosso sob efeito de cocaína e outros estimulantes. Percentual idêntico foi encontrado em janeiro de 2009 no Espírito Santo, em pesquisa da PRF com 732 motoristas de caminhão.

O problema não diz respeito apenas aos caminhoneiros, mas a todos que com eles compartilham as rodovias, mesmo que no banco do carona ou na poltrona de um ônibus. O Brasil tem 1,6 milhão de quilômetros de estradas, 87% sem asfalto, por onde circulam 18 milhões de carros, 3 milhões de veículos comerciais leves, 2,5 milhões de caminhões de grande porte e 80 mil ônibus. Conforme dados compilados pelo Ministério da Saúde, 35 mil pessoas morrem no trânsito a cada ano no país, 24 mil delas em rodovias, das quais 2,5 mil são caminhoneiros. Pelos dados da PRF, duas em cada três das mortes nas rodovias federais envolvem veículos de carga.

Acidentes envolvendo caminhão são, em geral, de maior gravidade. Não há como precisar em quantas dessas mortes há por trás um motorista esgotado pelo excesso de trabalho ou sob efeito de entorpecente. Decerto não são poucos. Conforme estudos, três entre quatro acidentes são causados por falha humana, decorrente de excesso de velocidade, fadiga do motorista e uso de drogas ou medicamentos para ficar acordado. A infraestrutura deficitária também tem sua parcela de culpa. Estudo da Confederação Nacional dos Transportes mostra que sete de cada dez quilômetros de estradas no país apresentam problemas de pavimento, sinalização e/ou geometria viária.

A cocaína, tanto em pó quanto em pedra (crack) representa perigo maior quando usada por motoristas. “Provoca um efeito de euforia e o condutor acredita que dirige melhor. A pessoa sob efeito de cocaína está mais propensa a assumir comportamentos de risco, o que pode levar a envolvimento maior em acidentes”, diz a diretora do Departamento de Álcool e Drogas da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, Vilma Leyton. O consumo de cocaína entre caminhoneiros é ainda mais grave porque eles passam a maior parte do tempo na estrada e dirigem veículos de grande porte.