O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade de algumas normas previstas na Lei 13.103/2015. A que tem gerado mais polêmica diz respeito ao descanso entre jornadas de trabalho dos caminhoneiros, que, por lei, deve ser de no mínimo 11 horas ininterruptas.
A decisão provocou reação imediata de diversos segmentos do setor de transporte. O policial rodoviário federal Agnaldo Nascimento Filho, com experiência na gestão pública, oferece uma análise abrangente e equilibrada sobre o tema, com ênfase na segurança viária e na preservação da dignidade dos trabalhadores. Segue o artigo:
Regulamentação dos tempos de direção e descanso: segurança viária, dignidade do trabalho e infraestrutura logística no Brasil
Agnaldo Nascimento Filho
O transporte rodoviário de cargas ocupa um lugar central na matriz logística e econômica brasileira. Responsável por aproximadamente 60% de toda a movimentação de mercadorias no país, esse modal conecta centros de produção, polos industriais, zonas portuárias e áreas de consumo, desempenhando papel estratégico no abastecimento interno e nas exportações. Por trás dessa engrenagem logística, estão os motoristas profissionais, categoria composta por centenas de milhares de trabalhadores que, diariamente, enfrentam longas jornadas nas rodovias federais e estaduais, expostos a condições de trabalho muitas vezes adversas.
INTRODUÇÃO
Historicamente, o Brasil convive com um quadro de altos índices de sinistros viários envolvendo veículos de carga, com significativa participação da fadiga do motorista como fator contribuinte para os sinistros viários. Essa realidade sempre colocou em evidência a necessidade de estabelecer limites claros e equilibrados para os tempos de direção e os períodos de descanso desses profissionais, garantindo não apenas a segurança individual dos condutores, mas também a segurança coletiva de todos os usuários das rodovias.
Ao longo da última década, a regulamentação da jornada de trabalho dos motoristas profissionais passou por diversas transformações legislativas e judiciais. Desde a edição da Lei nº 12.619/2012, passando pela promulgação da Lei nº 13.103/2015, até a mais recente Lei nº 14.599/2023, o tema tem sido objeto de intenso debate entre empregadores, trabalhadores, juristas, órgãos de fiscalização e o Poder Judiciário. Esse ciclo de mudanças culminou no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5322 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), decisão que estabeleceu novos parâmetros constitucionais para a regulamentação da matéria.
Paralelamente às discussões jurídicas, o Brasil enfrenta um desafio estrutural de infraestrutura logística: a histórica insuficiência de Pontos de Parada e Descanso (PPDs) ao longo da malha rodoviária nacional. Esse déficit compromete a capacidade dos motoristas de cumprir os intervalos legais de descanso de forma segura e digna, o que agrava ainda mais o cenário de risco nas estradas.
Diante desse contexto, o presente artigo busca analisar, de forma integrada e aprofundada, os principais marcos legais e institucionais que moldam a atual regulamentação dos tempos de direção e descanso no Brasil. O texto aborda o impacto da decisão do STF na ADI 5322, as mudanças legislativas mais recentes, a lacuna normativa existente no §8º do art. 67-C do CTB, o papel estratégico dos órgãos de trânsito e fiscalização (como PRF, ANTT, DNIT e Senatran) e os avanços representados pela publicação da Portaria nº 387/2024, que instituiu a Política Nacional de Implantação de Pontos de Parada e Descanso (PNPPD).
O objetivo é oferecer uma análise crítica que contribua para o debate técnico e institucional, apontando caminhos para a construção de uma regulamentação que concilie segurança viária, proteção social dos motoristas e viabilidade operacional para o setor de transporte de cargas.
O JULGAMENTO DA ADI 5322: REAFIRMAÇÃO DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL AOS MOTORISTAS PROFISSIONAIS
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5322, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres (CNTTT) em 2015, foi um marco jurídico na defesa da saúde e segurança dos motoristas profissionais no Brasil. A ação questionava a constitucionalidade de vários dispositivos da chamada “Lei do Motorista” (Lei nº 13.103/2015), popularmente conhecida como “Lei do Descanso”, que havia flexibilizado regras sobre jornada de trabalho e tempos de descanso.
O que motivou a ADI 5322?
A CNTTT argumentou que a Lei nº 13.103/2015, ao alterar a CLT e o Código de Trânsito Brasileiro, violava direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal. Entre os principais pontos questionados estavam:
- A possibilidade de jornadas excessivas, superiores aos limites constitucionais previstos no art. 7º, incisos XIII e XIV, da Constituição, que asseguram jornada máxima de 8 horas diárias e 44 horas semanais, além de descanso mínimo entre jornadas;
- A permissão para fracionamento indevido do descanso interjornada, permitindo que motoristas descansassem de forma parcelada em condições que não garantiam a recuperação adequada da saúde física e mental;
- A autorização para que o tempo de espera (como períodos parados em pátios de carga ou filas para carregamento e descarregamento) fosse considerado como tempo de descanso, o que, na prática, mascarava jornadas exaustivas e prejudicava o direito ao efetivo repouso;
- A redução ou supressão de intervalos para descanso e alimentação durante a jornada.
A ação também destacou que essas mudanças afrontavam princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a valorização social do trabalho (art. 1º, IV), a redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII) e a proteção à saúde (art. 6º e art. 196).
A decisão do STF: limites constitucionais à flexibilização
Em junho de 2023, após quase oito anos de tramitação, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da ADI 5322, declarando a inconstitucionalidade de diversos dispositivos da Lei nº 13.103/2015.
A decisão teve efeitos diretos sobre a regulamentação da jornada de trabalho dos motoristas profissionais, com as seguintes principais determinações:
- Vedação à ampliação desmedida da jornada: O STF reafirmou que a jornada diária dos motoristas profissionais deve respeitar os limites constitucionais de 8 horas diárias e 44 horas semanais, com possibilidade de até 2 horas extras mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho, mas sem flexibilizações ilimitadas como previstas anteriormente na lei.
- Restabelecimento da integralidade do descanso interjornada: A decisão afastou a possibilidade de fracionamento do descanso interjornada de 11 horas consecutivas, exigindo que o motorista tenha um período contínuo de repouso adequado.
- Inconstitucionalidade do uso do tempo de espera como descanso: O STF considerou inválida a previsão que equiparava tempo de espera a tempo de descanso. O tempo de espera agora deve ser considerado como tempo à disposição do empregador, com devida remuneração, sem prejudicar os direitos ao descanso efetivo.
Impactos sobre o futuro da regulamentação dos tempos de direção e descanso
A decisão da ADI 5322 estabeleceu um novo patamar de proteção jurídica para os motoristas profissionais. Ela reforçou a obrigação do Estado brasileiro de adotar políticas e regulamentações que estejam em plena sintonia com os direitos fundamentais à saúde, segurança e dignidade no trabalho.
Para o Contran e para a Senatran, que têm a missão de regulamentar o §8º do art. 67-C do CTB, a decisão representa um claro balizador: qualquer norma infralegal que venha a flexibilizar os tempos de direção e descanso precisará estar estritamente alinhada aos parâmetros constitucionais fixados pelo STF. Isso significa que a regulamentação futura:
- Deverá ter caráter excepcional, restrito e fundamentado, aplicável apenas em casos de comprovada força maior ou impossibilidade logística efetiva, como a ausência ou saturação de Pontos de Parada e Descanso.
- Não poderá criar novas formas de flexibilização ampla, como aquelas que já foram declaradas inconstitucionais.
- Terá que prever salvaguardas concretas para garantir que o direito ao descanso não seja relativizado de maneira a colocar em risco a segurança viária, a saúde dos motoristas e os direitos dos trabalhadores.
Além disso, a decisão reforça a importância de políticas públicas que ampliem a oferta de infraestrutura adequada nas rodovias (como a Política Nacional de Pontos de Parada e Descanso – PNPPD) e fortaleçam os mecanismos de fiscalização por órgãos como a Polícia Rodoviária Federal (PRF).
A LACUNA DO §8º DO ART. 67-C DO CTB E A ESPERA POR REGULAMENTAÇÃO: ENTRE SEGURANÇA JURÍDICA, FISCALIZAÇÃO EFETIVA E VIABILIDADE OPERACIONAL
Evolução normativa do §8º do art. 67-C: da exceção automática à exigência de regulamentação
A trajetória legislativa do §8º do art. 67-C do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) ilustra bem as dificuldades de conciliar proteção ao trabalhador com as exigências operacionais do transporte rodoviário de cargas no Brasil.
Na redação original, incluída pela Lei nº 14.440/2022, o dispositivo estabelecia de forma direta e automática que a indisponibilidade de Pontos de Parada e Descanso (PPDs) na rota programada, ou o exaurimento de vagas nos PPDs disponíveis, configuraria situação excepcional de inobservância justificada dos tempos de direção e descanso, dispensando até mesmo registros ou anotações por parte do motorista:
Redação original (Lei nº 14.440/2022):
“§ 8º Constitui situação excepcional de inobservância justificada do tempo de direção e de descanso pelos motoristas profissionais condutores de veículos ou composições de transporte rodoviário de cargas, independentemente de registros ou de anotações, a indisponibilidade de pontos de parada e de descanso reconhecidos pelo órgão competente na rota programada para a viagem ou o exaurimento das vagas de estacionamento neles disponíveis.”
Poucos meses depois, a Medida Provisória nº 1.153/2022 trouxe uma alteração relevante, ao retirar a dispensa de registros e estabelecer que essas exceções dependeriam de regulamentação futura pelo Contran:
Redação dada pela MP nº 1.153/2022:
“§ 8º Constitui situação excepcional de inobservância justificada do tempo de direção e de descanso pelos motoristas profissionais condutores de veículos ou composições de transporte rodoviário de cargas, a indisponibilidade de pontos de parada e de descanso na rota programada para a viagem ou o exaurimento das vagas de estacionamento neles disponíveis, na forma regulada pelo Contran.”
Finalmente, a Lei nº 14.599/2023 consolidou essa mudança de rumo, estabelecendo que caberá ao Contran regulamentar as situações excepcionais de descumprimento justificado, vinculando-as especificamente à indisponibilidade de PPDs ou ao esgotamento de vagas:
Redação atual (Lei nº 14.599/2023):
“§ 8º Regulamentação do Contran definirá as situações excepcionais de inobservância justificada do tempo de direção e de descanso pelos motoristas profissionais condutores de veículos ou composições de transporte rodoviário de cargas justificadas por indisponibilidade de pontos de parada e de descanso na rota programada para a viagem ou por exaurimento das vagas de estacionamento neles disponíveis.”
Essa evolução normativa sinaliza uma clara mudança de abordagem: do reconhecimento automático das exceções, passou-se para um modelo que exige regulamentação técnica específica, com critérios claros e controláveis.
O papel do Contran e da Senatran: da liderança normativa à gestão da agenda regulatória
O Conselho Nacional de Trânsito (Contran), como órgão máximo normativo e consultivo do Sistema Nacional de Trânsito (SNT), tem a atribuição legal de regulamentar o §8º do art. 67-C, conforme estabelecido pela nova redação da lei. Isso significa que nenhuma flexibilização ao cumprimento dos tempos de direção e descanso poderá ser considerada válida até que o Contran publique a regulamentação específica.
A Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), enquanto Secretaria-Executiva do Contran, desempenha papel estratégico nesse processo. Cabe à Senatran conduzir os estudos técnicos que subsidiarão a decisão normativa, organizar consultas públicas, promover a articulação entre os diferentes órgãos do SNT (como PRF, ANTT e DNIT) e coordenar a inclusão do tema na Agenda Regulatória do Contran. Nesse contexto, é urgente a revisão da Resolução Contran nº 525/2015, cuja vigência se iniciou ainda sob os efeitos da Lei nº 12.619/2012, já alterada pela Lei nº 13.103/2015, mas que não contempla as alterações trazidas pela Lei nº 14.599/2023 e pelo julgamento da ADI 5322, nem incorpora os avanços tecnológicos disponíveis atualmente para o controle da jornada de trabalho, como sistemas de telemetria, tacógrafos digitais conectados e plataformas eletrônicas de rastreamento com registros auditáveis. A atualização normativa deve assegurar respaldo técnico e jurídico para uma fiscalização efetiva, preservando a saúde dos condutores e a segurança viária.
Outro aspecto relevante é o papel da Senatran na produção de análises de impacto regulatório, de forma a antecipar os efeitos sociais, econômicos e operacionais da nova norma sobre os diversos públicos envolvidos: motoristas, empresas transportadoras, agentes de fiscalização e sociedade em geral.
Os riscos de uma regulamentação inadequada: entre o excesso de rigidez e a permissividade
O desafio que se impõe ao Contran e à Senatran é o de construir uma norma equilibrada, que assegure a proteção dos motoristas contra jornadas extenuantes, mas que também reconheça as limitações operacionais do transporte rodoviário de cargas no Brasil.
Se a regulamentação for excessivamente rígida, ao não considerar situações reais como interrupções de tráfego por sinistros viários, obras, condições climáticas extremas ou a própria carência de PPDs em diversos corredores logísticos, haverá risco de criar uma situação de inviabilidade operacional para os motoristas e para as empresas de transporte. Isso pode resultar em descumprimentos generalizados, judicializações em massa e dificuldades para os órgãos de fiscalização, como por exemplo, a Polícia Rodoviária Federal (PRF), que se verão obrigados a aplicar a norma mesmo em contextos de força maior.
Por outro lado, uma regulamentação excessivamente permissiva pode comprometer a segurança viária, aumentar o número de motoristas em condição de fadiga nas estradas, fragilizar a proteção social dos condutores e abrir espaço para práticas empresariais abusivas, além de gerar insegurança jurídica para os próprios agentes públicos encarregados da fiscalização. Mais do que isso, pode esvaziar o espírito da norma ao deixar de assegurar efetivamente os direitos dos motoristas, contribuindo para um cenário de precarização das condições de trabalho destes e para a elevação dos riscos à segurança viária nas rodovias.
Portanto, a futura regulamentação precisa ser baseada em critérios objetivos, exigir comprovação documental das situações excepcionais, prever o uso de tecnologias de rastreamento e telemetria, e garantir segurança jurídica para todos os envolvidos.
Flexibilizações por meio de acordos coletivos: limites constitucionais e jurisprudenciais
Vale destacar ainda que a legislação brasileira admite certa margem de flexibilização por meio de instrumentos coletivos, como acordos e convenções coletivas de trabalho, nos termos do art. 611-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Contudo, essa possibilidade não é absoluta. O Supremo Tribunal Federal (STF) tem reiterado que tais instrumentos não podem suprimir direitos fundamentais relacionados à saúde, segurança e dignidade do trabalhador.
Por isso, ainda que existam ajustes negociados entre sindicatos de trabalhadores e empregadores, a futura regulamentação do Contran deverá estabelecer balizas claras que garantam que tais flexibilizações ocorram apenas dentro dos limites constitucionais, evitando que exceções à regra se tornem, na prática, a regra.
Recomendações para os próximos passos do processo regulatório
Diante da urgência social e operacional que envolve a regulamentação do §8º do art. 67-C do CTB, algumas recomendações podem contribuir para uma construção normativa mais equilibrada, técnica e legítima:
- Realização de Consulta Pública Ampla e Transparente:
É essencial que a Senatran, como responsável pela coordenação técnica da pauta no âmbito do Contran, promova uma consulta pública estruturada, garantindo a participação de sindicatos de motoristas, entidades empresariais do setor de transporte, órgãos de fiscalização (PRF, ANTT, DNIT) e especialistas em saúde e segurança do trabalho.
- Análise de Impacto Regulatório (AIR) Completa:
Antes da publicação da regulamentação, recomenda-se que a Senatran elabore uma AIR detalhada, avaliando os impactos econômicos, sociais, operacionais e de segurança viária de diferentes alternativas normativas.
- Definição de Critérios Objetivos e Comprovação Documental:
A futura regulamentação deverá prever que qualquer alegação de excepcionalidade seja devidamente comprovada pelo motorista e/ou pela empresa, por meio de registros de telemetria, relatórios de viagem ou documentos fiscais que evidenciem a situação de indisponibilidade de PPDs ou saturação de vagas.
- Previsão de Regras Transitórias:
Considerando o atual déficit de PPDs no país, é recomendável que o Contran avalie a possibilidade de instituir regras transitórias, com prazos e metas para adequação, evitando uma ruptura abrupta na operação do transporte rodoviário de cargas.
- Integração com a Política Nacional de Implantação de PPDs (PNPPD):
A nova norma deve estar alinhada com os objetivos e diretrizes da Portaria nº 387/2024, garantindo que a expansão da infraestrutura de PPDs acompanhe a exigência de cumprimento rigoroso das jornadas. - Capacitação dos agentes de fiscalização:
Por fim, é fundamental que PRF, ANTT e demais órgãos fiscalizadores recebam capacitação específica sobre os parâmetros da nova regulamentação, para assegurar uniformidade na interpretação e aplicação da norma em todo o território nacional.
- Benchmarking Internacional:
Como referência internacional, destaca-se o modelo adotado pela Espanha, que combina fiscalização rigorosa com uso obrigatório de tacógrafos digitais em veículos de transporte rodoviário. A regulamentação espanhola é clara quanto aos limites de condução e exige, por meio do Real Decreto 640/2007 e do Reglamento (CE) nº 561/2006, o registro automático e auditável da jornada, incluindo pausas obrigatórias após cada período contínuo de direção. O cumprimento rigoroso dessas normas contribui não apenas para a redução da fadiga ao volante, mas também atua como elemento dissuasório ao uso de substâncias estimulantes entre motoristas, prática identificada em diversos estudos como consequência de jornadas prolongadas. A experiência espanhola demonstra que a tecnologia, aliada a uma regulação robusta e bem fiscalizada, pode proteger vidas e promover dignidade no trabalho.
A INFRAESTRUTURA DE PONTOS DE PARADA E DESCANSO: DA HISTÓRICA INSUFICIÊNCIA À POLÍTICA NACIONAL DE IMPLANTAÇÃO (PNPPD)
A insuficiência de Pontos de Parada e Descanso (PPDs) nas rodovias federais é um dos principais gargalos estruturais para a efetiva implementação das normas de controle de jornada dos motoristas profissionais no Brasil. Esse problema, que remonta a décadas, afeta diretamente a segurança viária, a saúde ocupacional dos motoristas e o desempenho logístico nacional.
Um histórico de avanços normativos sem efetividade prática
Desde 2012, com a promulgação da primeira versão da Lei do Motorista (Lei nº 12.619/2012), a legislação brasileira já previa a necessidade de assegurar locais adequados para repouso e descanso dos condutores. Posteriormente, o Decreto nº 8.433/2015, regulamentando dispositivos da Lei nº 13.103/2015, atribuiu ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) a responsabilidade de credenciar e manter um cadastro oficial de PPDs.
No entanto, apesar desse arcabouço legal, o número de PPDs efetivamente credenciados permaneceu extremamente reduzido. Segundo dados oficiais do DNIT, até o início de 2024, menos de 70 PPDs estavam oficialmente homologados em todo o território nacional, número claramente insuficiente diante da extensão da malha rodoviária federal (mais de 75 mil quilômetros) e da frota nacional de caminhões, que supera os 2,5 milhões de unidades.
As dificuldades estruturais e de incentivo à implantação de PPDs
Diversos fatores contribuíram para esse cenário de baixa adesão:
- Falta de incentivos econômicos para o setor privado investir na criação e adequação de pontos de parada.
- Burocracias excessivas no processo de credenciamento, tanto junto à ANTT quanto ao DNIT.
- Ausência de um mapeamento nacional oficial de áreas prioritárias, dificultando o planejamento de novos empreendimentos.
- Deficiências na articulação intergovernamental, entre União, Estados e Municípios, para fomentar iniciativas públicas e privadas de infraestrutura de apoio ao transporte.
Essa ausência de estrutura adequada tem exposto motoristas profissionais a riscos como:
- Paradas em locais improvisados e sem segurança;
- Aumento da vulnerabilidade a roubos e sinistros viários;
- Dificuldades de acesso a condições mínimas de higiene e alimentação;
- Prejuízos à saúde física e mental devido a descanso precário.
A criação da Política Nacional de Implantação de Pontos de Parada e Descanso (PNPPD)
Com o objetivo de superar esse histórico de ineficácia, o Ministério dos Transportes publicou, em maio de 2024, a Portaria nº 387/2024, que institui a Política Nacional de Implantação de Pontos de Parada e Descanso (PNPPD).
Essa política representa uma mudança de paradigma na abordagem governamental sobre o tema. As principais diretrizes da PNPPD incluem:
- Mapeamento de trechos prioritários: Pela primeira vez, o Brasil contará com um diagnóstico técnico e georreferenciado, que identificará os pontos críticos da malha rodoviária onde há maior necessidade de implantação de PPDs, considerando o volume de tráfego, os índices de sinistros viários e a distância entre estruturas existentes.
- Fomento à participação privada: A política prevê incentivos à iniciativa privada para construção, ampliação ou adequação de instalações que possam ser credenciadas como PPDs, com simplificação de processos, facilitação de crédito e possibilidades de parcerias público-privadas (PPPs).
- Definição de critérios técnicos de infraestrutura mínima: Os PPDs deverão atender a requisitos objetivos relacionados a segurança, higiene, alimentação, acessibilidade e sinalização, com padrões alinhados a boas práticas internacionais e às orientações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da União Internacional dos Transportes Rodoviários (IRU).
- Articulação com políticas de segurança viária e saúde ocupacional: A PNPPD está integrada à Política Nacional de Segurança Viária e ao Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (PNATRANS), reforçando o papel estratégico dos PPDs como elementos de prevenção de sinistros viários relacionados à fadiga.
- Criação de incentivos financeiros e fiscais: O Ministério dos Transportes estuda, em articulação com o Ministério da Fazenda e com o Congresso Nacional, a adoção de medidas que incluam linhas de crédito específicas, benefícios tributários e modelos de concessão com exigência de implantação de PPDs como contrapartida.
- Metas e perspectivas de médio prazo: A PNPPD estabelece como meta inicial a redução do déficit de PPDs nas rodovias federais, buscando aproximar o Brasil de referências internacionais de infraestrutura para motoristas profissionais. Segundo parâmetros recomendados pela OIT e pela IRU, seria necessário haver pelo menos um PPD a cada 150 quilômetros nos principais corredores logísticos, o que significaria a implantação de cerca de 500 a 600 unidades em nível nacional, considerando a malha rodoviária federal.
Esse esforço exigirá:
- A mobilização de investimentos públicos e privados;
- O engajamento de Estados e Municípios na disponibilização de áreas;
- A criação de modelos sustentáveis de operação e manutenção das unidades.
A efetiva implantação dessa política é condição essencial para que o Brasil avance na aplicação justa e equilibrada da legislação sobre tempos de direção e descanso, evitando que motoristas sejam penalizados por descumprimento de normas cuja observância plena, hoje, ainda esbarra na ausência de condições objetivas de infraestrutura nas rodovias.
CONCLUSÃO: UM MOMENTO DECISIVO PARA A SEGURANÇA VIÁRIA, OS DIREITOS DOS MOTORISTAS E A GOVERNANÇA REGULATÓRIA
O Brasil vive um momento decisivo na consolidação de um novo marco normativo para a regulamentação dos tempos de direção e descanso dos motoristas profissionais. O julgamento da ADI 5322 pelo Supremo Tribunal Federal representou um divisor de águas ao reafirmar a centralidade dos direitos fundamentais à saúde, à segurança e à dignidade do trabalho, ao mesmo tempo em que sinalizou limites constitucionais claros para a flexibilização de jornadas.
As mudanças legislativas que culminaram na atual redação do §8º do art. 67-C do CTB refletem o esforço do legislador em estabelecer um equilíbrio entre a proteção ao trabalhador e as necessidades operacionais do transporte rodoviário de cargas. A nova redação, ao delegar ao Contran a tarefa de regulamentar as situações excepcionais de inobservância dos tempos de direção e descanso, reforça a importância de uma resposta normativa técnica, transparente e juridicamente sólida.
Neste contexto, a responsabilidade da Senatran, enquanto Secretaria-Executiva do Contran e coordenadora da agenda regulatória, ganha protagonismo. A elaboração de uma regulamentação que seja ao mesmo tempo rigorosa na proteção dos direitos dos motoristas e sensível às realidades operacionais das rodovias dependerá da capacidade de articulação interinstitucional e da qualidade das análises técnicas que embasarão a decisão do Contran.
A atuação da PRF, da ANTT e do DNIT continuará a ser estratégica, tanto no campo da fiscalização quanto na operacionalização de soluções estruturais, como o aprimoramento dos processos de credenciamento de Pontos de Parada e Descanso (PPDs) e o fortalecimento da infraestrutura logística.
A publicação da Portaria nº 387/2024 pelo Ministério dos Transportes, que instituiu a PNPPD, representa um passo importante para a superação do déficit histórico de locais adequados para o descanso dos motoristas. O êxito dessa política, porém, dependerá de sua efetiva implementação, com investimentos públicos e privados, incentivos adequados e um plano de expansão estruturado.
Além disso, o fortalecimento dos mecanismos de fiscalização, a capacitação dos agentes públicos e a adoção de tecnologias para controle de jornada são soluções complementares que podem contribuir para uma gestão mais eficiente e justa da política de tempos de direção e descanso.
Por fim, é essencial que o processo regulatório envolva amplo diálogo com o setor produtivo, os sindicatos de trabalhadores e a sociedade civil, assegurando que a futura regulamentação do Contran seja tecnicamente robusta, socialmente justa e operacionalmente exequível. Somente assim será possível transformar o atual cenário de incertezas em um ambiente de segurança jurídica, respeito aos direitos trabalhistas e promoção efetiva da segurança viária nas rodovias brasileiras.
AGNALDO DO NASCIMENTO FILHO
Policial Rodoviário Federal. Coordenador-Geral de Segurança Viária da PRF (2019-2021) e Gerente de Projetos da Secretaria Nacional de Trânsito (2022). Especialista em Gestão Pública (ENAP), em Orçamento, Governança e Gestão de Riscos (UnB) e em Gestão Integrada de Segurança Pública (IFMT).