MOTOS: De acordo com a Seguradora Líder, nos últimos dez anos, o Seguro DPVAT pagou mais de 3,2 milhões de indenizações por conta de acidentes envolvendo motocicletas. Deste total, quase 200 mil pessoas morreram e 2,5 milhões ficaram com algum tipo de invalidez permanente. Foto: Divulgação

De acordo com a empresa, responsável pela administração do seguro obrigatório, a Susep não apresentou nenhum documento que comprove má gestão; especialistas dizem que todo mundo sairá perdendo

Na última segunda (11), o presidente Bolsonaro assinou Medida Provisória que extingue o Seguro DPVAT, administrado pela Seguradora Líder. Ao que parece o tiro pode sair pela culatra. Ou seja, especialistas afirma essa uma decisão irá prejudicar todos os cidadãos, mesmo quem não dirige.

Em nota oficial, o Governo Federal justificou que o fim do seguro obrigatório iria coibir potenciais fraudes, mas especialistas descartam a validade dessa razão.

Por outro lado, a Seguradora Líder, responsável pela administração do Seguro DPVAT rebateu as críticas feitas pela Superintendência de Seguros Privados (Susep) de ineficiência no chamado “seguro obrigatório”.

A Susep, autarquia vinculada ao Ministério da Economia que fiscaliza os seguros, disse que foi consultada pelo governo antes de ser anunciado, na última segunda (11), o fim do DPVAT. E disse que comprovou com dados a baixa eficiência do seguro, mas não detalhou quais foram as informações apresentadas ao ministério.

Antes, informou que a operação do DPVAT representa 1,9% do volume de receitas de seguros no país, mas consome 19% dos recursos de fiscalização da superintendência.

“Não há nada que indique ineficiência na gestão do Seguro DPVAT”, afirma a gestora do seguro obrigatório. “Ao contrário. A Seguradora Líder acumulou redução de despesa total da ordem de 9,9%, de janeiro a outubro de 2019, se comparado ao mesmo período do ano passado.”

A Líder é um consórcio de 73 seguradoras (veja a lista completa ao fim da reportagem) que administra o DPVAT desde 2007. Inclui as operadoras mais conhecidas do país e também uma empresa que tem entre seus sócios o presidente do PSL, o deputado federal Luciano Bivar. Juntas, as seguradoras que formam o consórcio representam 70% do mercado, segundo a própria Líder.

Susep

A superintendente da Susep, Solange Teixeira, disse ainda, na última terça, que havia uma corrupção enorme no modelo do seguro obrigatório. Um dia antes, ao anunciar o fim do DPVAT, o governo mencionou que a medida tem o potencial de evitar fraudes.

Em 2015, o DPVAT foi alvo de uma operação da Polícia Federal contra fraudes chamada “Tempo de despertar”. Na época, a PF e o Ministério Público estimaram que os prejuízos aos cofres públicos poderiam ser de R$ 1 bilhão em todo o Brasil.

Combate intenso às fraudes

Nessa quarta-feira (13), a Seguradora Líder disse que, desde 2017, aumentou a prevenção, detecção e investigação de fraudes na administração do DPVAT. Em 2018, 11.898 tentativas foram detectadas, evitando, segundo a seguradora, a perda de R$ 69,6 milhões.

Entre 2014 e 2015, uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) questionou o cálculo dos valores do DPVAT e constatou “despesas administrativas irregulares, acordos judiciais antieconômicos e provisões superestimadas com pagamento de indenizações em valores superiores aos limites estabelecidos em lei”.

Em relatório de julho último, o TCU disse que “após a Operação Tempo de Despertar, a administração da Seguradora Líder sofreu grande transformação”.

O tribunal citou mudanças no quadro de administradores e a implementação de ações de combate a fraudes, o que “resultou em relevantes superávits financeiros nos anos de 2016 a 2018”.

E destacou que “no fim de 2016, iniciou-se um movimento de grande redução da tarifa do DPVAT”. Os valores do seguro vêm caindo desde 2017. Em 2019, ficou mais barato também para motocicletas, responsáveis por 70% dos pedidos de indenização.

A Líder afirmou que intensificou o combate a fraudes desde 2017. Naquele ano, 17.550 tentativas foram descobertas — 44,8% do total de fraudes evitadas entre 2008 e 2016.

De acordo com a seguradora, até setembro de 2019 a fraude mais comum foi a documental, com 84,86% do total, seguida por declarações falsas (10,12%).

Tempo para pagar indenização

A Seguradora Líder afirmou que tem aprimorado seus sistemas para redução de tempo e custos nos processos e pagamentos das indenizações.

Entre as mudanças estão a internalização de atividades, como revisão de perícia médica, análise e aprovação de pagamentos para indenizações por invalidez permanente. E a criação de um aplicativo que permite iniciar o processo de pedido de indenização pelo celular.

De acordo com a empresa, com essas medidas, o tempo de pagamento de indenização caísse de até 30 dias, que é o prazo determinado por lei, para entre 7 e 9 dias úteis, após a entrega de toda a documentação.

Além disso, de acordo com a Líder, o número de pagamentos cresceu 7,7% de janeiro a outubro de 2019 em relação ao mesmo período do ano passado.

Conforme o balanço no site do consórcio, em 2018, 65 milhões de veículos pagaram o DPVAT e a arrecadação foi de R$ 4,7 bilhões.

Por lei, metade deste valor é destinada ao Sistema Único de Saúde (SUS) e ao Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). O montante pago em indenizações foi de R$ 1,4 bilhão. E a Líder diz ter encerrado o ano com lucro de R$ 1,1 milhão (0,02% da arrecadação).

De acordo com o governo federal, atualmente, o DPVAT tem reservas de R$ 8,9 bilhões, sendo que o valor estimado para cobrir as obrigações efetivas do seguro até o fim de 2025, quando a Líder deixará de administra-lo é de aproximadamente R$ 4,2 bilhões.

Reclamações

A Susep também apontou que “o volume de reclamações do DPVAT é um dos maiores do mercado, sendo a empresa administradora do seguro [Líder] a segunda colocada no ranking de reclamações”.

Segundo o consórcio, em 2018, a empresa teve 8.132 reclamações para 65,2 milhões de bilhetes (veículos que pagaram seguro) — o que representa 0,01% do volume total. Confrontando o número de acidentes recepcionados e o de reclamações, a porcentagem sobe para 1,36%. A empresa também disse que há reclamações não procedentes.

A Líder também respondeu à informação da Susep de que o DPVAT é alvo de “milhares de ações judiciais”. Segundo a gestora, o número de processos caiu mais de 15% nos primeiros oito meses de 2019, passando de 420 mil para 357 mil.

“No histórico de entradas de novas ações nos últimos 4 anos, a seguradora também acumula recuos, chegando a uma redução de 51% com a comparação dos 8 primeiros meses de 2019 com o mesmo período de 2015”. O índice de êxito nas ações, de acordo com a seguradora, é de mais de 70%.

Contramão

De acordo com o especialista de Trânsito, Rodolfo Rizzotto, o governo federal, ao publicar no Diário Oficial o fim do DPVAT por Medida Provisória, coloca em situação delicada as vítimas de trânsito mais humildes, mas beneficia as grandes seguradoras que já vislumbram um mercado trilionário.

Segundo Rizzotto, a ideia que está por trás é terminar com um seguro que movimenta alguns bilhões e trocá-lo por um mercado de trilhões. Leia e entenda o que está por trás dessa MP.

Rizzotto lembra que o seguro social foi criado em 1974, na época do então presidente General Ernesto Geisel, para dar alguma proteção as pessoas mais pobres vítimas de acidente de trânsito. “É um seguro singular porque protege todos os 210 milhões de brasileiros e não é necessário apurar quem é o culpado pelo acidente, nem mesmo se o proprietário do veículo estava em dia com o seguro”, frisa.

O especialista continua dizendo que isto permite maior agilidade no pagamento de indenização, particularmente para os casos de morte, em que muitas vezes os familiares da vítima sofrem o drama da perda e com frequência perdem o apoio financeiro de quem sustenta a família.

De acordo com ele, o governo diz que a extinção do DPVAT não desampara cidadãos em caso de acidentes, porque o país oferece “atendimento gratuito e universal na rede pública, por meio do SUS” e cobertura do auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, auxílio-acidente e pensão por morte para segurados do INSS, além do Benefício de Prestação Continuada (BPC/Loas).

“O SUS é responsável por prestar todo o atendimento médico necessário, enquanto o DPVAT garante indenização por dano corporal sofrido por um período de até três anos, seja por morte, com valor de R$ 13.500; por invalidez permanente, com pagamento de até R$ 13.500 a depender da gravidade da sequela; ou como reembolso de despesas médicas e suplementares, com valor que pode chegar a R$ 2.700”, explica.

Rizzotto alerta sobre o fato de que os proprietários dos veículos pagam o DPVAT com finalidade específica. “O dinheiro deve ser utilizado para pagar indenizações de vítimas, transferir recursos para o SUS e Denatran. Portanto, o Governo não tem o direito de usar esse dinheiro de outra forma. Mas quem se importa num país em que tudo vale e sempre valeu”, ressalta.

Na análise do especialista, ao mesmo tempo, o Governo informa que a população não ficará desprotegida mas não anuncia absolutamente nada novo, além dos direitos que a população já tem.

“O custo dessa obrigatoriedade poderá passar o seguro dos atuais R$ 16,00 para centenas ou até milhares de reais por veículo. Um mercado de trilhões que deixa as grandes seguradoras, controladas pelos gulosos bancos e multinacionais, com os dedos inquietos na expectativa de contar os generosos lucros que vão obter”, ironiza.

Rizzotto lembra que tudo foi anunciado na semana em que neste domingo (17) a ONU e o Brasil celebram o Dia Mundial em Memória das Vítimas de Trânsito. “O que poderia ser uma triste ironia é apenas mais um passo na contramão do trânsito mais seguro e humano.”

Diferenças

O seguro da Previdência Social é totalmente diferente do DPVAT, porque o trabalhador tem que estar contribuindo com o INSS para ter direito. Num país com mais de 13 milhões de desempregados, quem estiver em atividade informal e não contribuir nem como autônomo, não terá acesso.

O SUS será diretamente impactado com a medida provisória, caso seja de fato aprovada pelo Congresso. Em 2018, 45% da arrecadação do DPVAT foi direcionado para o Sistema Único de Saúde, ou o equivalente a R$ 2,1 bilhões.

De qualquer maneira, com repasse do DPVAT ou não, teoricamente o SUS continuará a atender todos os acidentados. Porém, a tendência é que o sistema fique ainda mais sobrecarregado.

Na opinião de Ernesto Tzirulnik, advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), não era do escopo do seguro obrigatório financiar a saúde pública, a despeito da pressão extra que o SUS sofrerá a partir de 2020. “Eu sempre critiquei o DPVAT por isso”, afirma. “Ele era um seguro de concepção inteligente e avançada, mas operado em desacordo com a sua própria função social, que é a de prestar a melhor indenização possível para vítimas de acidentes, não apenas uma verba suficiente para o velório”.

Tzirulnik critica o fato de o montante arrecadado pela cobrança do seguro ser dividido e usado para outras finalidades. Mas, ainda assim, ele também desaprova a extinção do seguro obrigatório. “O baixo montante das indenizações pagas era simples de ser resolvida”.

“Lamentavelmente o governo optou por uma solução mais radical. Esta extinção deixa a sociedade brasileira desabrigada dessa proteção contra acidentes de trânsito, que é uma das principais causas de morte e invalidez no país. E estão fazendo isso sem motivo relevante”, diz o presidente do IBDS.

De acordo com a CNseg (Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização), cerca de 70% dos carros registrados no Brasil não possuem qualquer tipo de seguro ou cobertura privada para proteção do bem e terceiros.

“A sociedade brasileira é muito pouco protegida”, lembra Tzirulnik. “Não temos fundo de proteção contra acidentes, não temos uma boa renda per capita que consiga enfrentar os primeiros momentos de uma desgraça. O DPVAT era um seguro que podia cumprir essa função de uma forma bem melhor do que vinha cumprindo”.

Em outros países, uma apólice de seguro para o proprietário do automóvel e seus motoristas é algo compulsório. Dependendo do país, os infratores são retidos e autuados. No limite, têm a carteira de habilitação cassada por dirigir sem a cobertura obrigatória.

Falta de sensibilidade

Armando Silva de Souza ainda aponta para o terrível timing da decisão. “Me impressionou muito a falta de sensibilidade do governo federal em editar essa medida provisória cinco dias antes da data mundial em memória das vítimas de acidente”, lamenta.

A Ordem dos Advogados do Brasil publicou, na terça-feira (12), nota desaprovando a Medida Provisória, determinada em desprezo à “informação da seguradora gestora do DPVAT, de que somente no primeiro semestre deste ano de 2019 foram pagas 18.841 indenizações por morte, 103.068 indenizações por invalidez permanente e 33.123 indenizações para despesas médicas” e dizendo confiar no Congresso Nacional para que ela seja rejeitada.