Alice A. da Matta Chasin

ENTREVISTA: DRA. ALICE  CHASIN

A obrigatoriedade de exames toxicológicos, em particular os de larga janela de detecção, popularmente conhecidos como exames de cabelo, está gerando uma série de dúvidas nos motoristas profissionais das categorias C, D e E, que serão obrigados a fazer o teste na renovação da carteira ou na primeira habilitação nestas categorias. Para esclarecer como funcionam esses exames, sua importância e outros tipos de exames que permitem detectar o uso de drogas por motoristas, realizamos esta entrevista com uma das mais respeitadas autoridades científicas na área da Toxicologia :  Alice A. da Matta Chasin – Doutora em Toxicologia e Mestre em Análises Toxicológicas FCF/USP  . Suas respostas trazem luz ao tema e merecem leitura atenta. O assunto é complexo mas ela consegue colocar numa linguagem simples que permite a leigos compreender melhor as vantagens desses exames e as políticas complementares que podem ser implantadas.

1)      O exame toxicológico de cabelo e queratina é confiável e pode efetivamente detectar o uso de drogas nos últimos 90 dias?

Sim, mas existem vários fatores determinantes para o que o exame seja confiável. Estes fatores dependem dos procedimentos utilizados na realização dos exames e também dependem dos indivíduos.Quanto aos procedimentos: Para um resultado de laboratório ser confiável, as amostras devem ser coletadas seguindo as normas internacionais de coleta e cadeia de custódia (procedimentos desde a coleta até a conclusão final do processo) e o laboratório deve ter procedimentos rigorosos tanto na metodologia como nas etapas que garantem a cadeia de custódia. Por exemplo, um laboratório acreditado pelas normas da ISO/IEC 17025 certifica a sua competência na realização destes exames. Quanto ao individuo a ser testado: a quantidade de drogas encontradas em amostras de cabelo e pelos varia de acordo com a droga utilizada e com as características  individuais devido às diferenças de metabolismo. Depende também da dose e da freqüência de uso. Por exemplo, a detecção de um episódio de uso de cocaína é mais provável que a detecção de um episódio de maconha. Se uma pessoa usa maconha esporadicamente, dependendo do tamanho do cigarro e qualidade da erva, este uso pode ou não ser detectado, porque o metabólito da maconha se deposita em menores quantidades no cabelo do que, por exemplo, a cocaína. Outro exemplo: é possível que uma dose única de cocaína no período dos 90 dias não seja detectada se a dose utilizada foi pequena e em uma única ocasião. Entretanto, se um indivíduo usa cocaína regularmente, i.e. todos os fins de semanas, a detecção da cocaína é praticamente certa mesmo que o mesmo faça uso de descolorantes ou tinturas. Essas informações à luz da ciência são de interpretação possível e por vezes suscita opiniões equivocadas que servem para propósitos outros que não os científicos.

2)      A coleta é simples e confiável?

Sim. Para a coleta ser confiável, as amostras devem ser coletadas seguindo as normas rigorosas de coleta e cadeia de custódia. O coletor não precisa ser da área médica, mas é preciso que seja treinado adequadamente.

3)      Quais os efeitos que as drogas podem provocar num motorista que faz uso eventual?

Dependendo da droga, dose e do momento em que drogas são utilizadas, elas afetam as funções requeridas para o ato de dirigir, principalmente a atenção do motorista, o que pode ser um risco a ele próprio e a outros. É muito perigoso um motorista conduzir um veiculo sob influência de drogas ou álcool, mesmo que o uso seja  eventual. Basta uma vez.

4)      Quais as consequências se ele é usuário regular e que riscos representa para quem dirige caminhões e ônibus?

O mesmo se aplica a esta pergunta, mas sabemos que algumas drogas quando usadas por exemplo em fins de semana, como no caso do ecstasy, será na quarta feira que a pessoa terá algumas funções cognitivas  afetadas, embora sem estar sob influência dos efeito imediatos causados pela droga. Isso pode trazer risco. O motorista usuário regular de drogas tem uma chance muito alta de estar conduzindo um veiculo sob influência de drogas.

5)      No caso dos motoristas profissionais, que utilizam cada vez mais de drogas e rebites para aguentar as longas viagens e jornadas, os exames de cabelo podem ser um bom instrumento para o trabalho preventivo?

Pode. Na minha opinião, se todos fossem regularmente testados haveria uma diminuição de acidentes em qualquer ambiente de trabalho.  Estudos mostram que o exame toxicológico diminui acidentes no ambiente de trabalho. Porém no caso da resolução em epígrafe existe o fator “planejamento” que irá afetar o resultado. Como a exigência especifica que o exame ocorre antes da renovação da carteira, será uma questão do motorista usuário de drogas  “planejar” a parar o uso delas 3-4 meses antes da época da renovação. Esta obrigação terá vários efeitos em pessoas diferentes. Para aqueles dependentes de drogas, fica muito difícil parar por este tempo longo, e assim sendo terão os testes positivos, mas outros neste mesmo grupo conseguirão parar de usar drogas completamente, o que reforça o valor positivo do teste. No entanto, muitos, os que planejaram bem, irão parar de usar drogas apenas pelo período necessário para que o resultado seja negativo, apenas para a renovação da carteira. O saldo será que muitos terão parado de usar drogas, mas muitos não. Por isso, na minha opinião, o esforço deveria combinar os exames toxicológicos de cabelo com blitz nas estradas (ou nas próprias empresas quando se aplicar), semelhante ao que já feito com o álcool. Ainda não existe um sistema para a detecção de drogas semelhante ao bafômetro, mas existem muitas pesquisas na área e será uma questão de tempo para que um sistema adequado apareça. Por enquanto existem testes rápidos de drogas em saliva ou urina, são kits de coleta de saliva ou urina que podem ser usados nas estradas que dão resultados rápidos, no momento da blitz. Porém os resultados positivos desses testes rápidos, são apenas presumidamente positivos e assim sendo, devem ser confirmados em laboratório com competência técnica para isso (credenciados pelas instituições competentes para esse fim). É assim que ocorre em alguns países da Europa e EUA. A legislação em alguns dos países é tal que os indivíduos envolvidos em incidentes ou acidentes devido ao álcool ou drogas têm a carteira de motorista suspensa por períodos que dependem da sua participação em cursos de reabilitação, exames médicos e psicológicos associados a testes toxicológicos principalmente no cabelo, mas também associados a outros exames clínicos, de sangue ou urina, para demonstrar abstinência por longos períodos para pode reaver a carta de habilitação. Alguns estudos mostraram que a reincidência após o participação nos programas de reabilitação chegou a ser reduzida em media de 45%.

6)      A coleta de urina, exames de sangue, realizados para flagrar motoristas utilizando drogas, além dos questionamentos jurídicos, apresenta um grave problema quando se trata de fiscalizações nas rodovias. Impedir que um motorista de automóvel siga viagem é uma coisa relativamente simples, principalmente em área urbana. Mas nas rodovias, longe dos grandes centros, quando caminhoneiros e motoristas de ônibus, são flagrados sob efeito de drogas existem inúmeros problemas.  Nesses casos, por exemplo,  não é fácil  estacionar uma carreta com 30 m e 40 toneladas ou mandar descer 46 passageiros de ônibus no meio da estrada. Nesse sentido o trabalho preventivo não é mais importante e realista que fiscalizar o consumo eventual no ato?

Realmente o trabalho preventivo é fundamental, porém, o gerenciamento dessa situação requer ações interagentes de vários segmentos da sociedade, especialistas, sindicatos etc… para viabilizar o processo de forma consistente. Por esse motivo é importante a discussão. As ações não são excludentes. O trabalho preventivo não afasta a necessidade da vigilância constante, pois, com certeza, todos preferimos uma carreta com 30m e 40 toneladas parada  do que descontrolada devido a um motorista sem condições de conduzi-la.

 7)      Os exames de sangue e urina são mais confiáveis e sua coleta mais simples?

Tanto a coleta de sangue como de urina têm algumas desvantagens em relação à coleta de cabelo. Os exames de sangue necessitam de uma pessoa especialista da área médica, treinada para tirar sangue. Os exames com a urina requerem a utilização de banheiros e a observação da obtenção da urina para confirmar que a urina colhida é  de fato da pessoa que está sendo testada.  A coleta de cabelo requer que a pessoa seja treinada na coleta, mas não é preciso que ela seja da área médica e ainda, trata-se de coleta mais segura com menor risco de fraude por parte do doador da amostra, fato comum na coleta de urina para teste de drogas.  

8)      Desde que o Código de Trânsito Brasileiro entrou em vigor, em janeiro de 1998,  aguarda-se por algum sistema que permita identificar o uso de drogas pelos motoristas, assim como já ocorre com o popular “bafômetro”.Na sua avaliação, por que isso não ocorreu até hoje?

Por enquanto o bafômetro é apenas para dosagem de etanol (etilômetro).  Atualmente pode ser feita medição também para outras substâncias gasosas e voláteis.  Porém alguns centros estão pesquisando “bafômetros” para algumas substância psicoativas e eu acredito que um dia teremos um bom sistema de bafômetro para drogas, mas ainda não é possível.  O que deve acontecer bem antes (já está acontecendo em alguns países) será a utilização de testes rápidos de saliva que permitirá o seu uso nas estradas. Eles são viáveis mesmo que os resultados positivos presumidos tenham que ser confirmados em laboratórios. Os kits de saliva para análise em laboratório já existem e são amplamente usados, porém não são muito práticos em blitzs porque o resultado não é obtido na hora, mas é possível. Em minha opinião esta é uma melhor opção do que a de nada se fazer. É um começo para trabalhar na diminuição de acidentes devido a álcool ou drogas. Essas blitz poderiam parar veículos ao acaso para coleta das amostras de saliva, além do bafômetro,  e as positivas serem enviadas a um laboratório para confirmação. Os motoristas com resultados positivos para drogas sofreriam as sanções  cabíveis que constam na legislação vigente. Aliás, desde a promulgação da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, fica claro em seu artigo 165 que se refere à proibição de  “Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”.  As  Leis  11.275, de 7 de fevereiro de 2006 (conhecida como “Lei seca”) e 12.760, de 20 de dezembro de 2012 alteraram  redação de artigos no sentido de tornar mais rígidos os controles e coibir a “Direção perigosa” relativa ao uso de álcool e outras substâncias (drogas) que modificam estado de consciência e consequentemente comprometem o ato de dirigir. A Lei sempre referiu álcool e substâncias psicoativas, conhecidas genericamente como “drogas”.

9)      Pelo seu grande conhecimento quanto ao uso de drogas e suas consequências, quais as políticas públicas que deveriam ser implantadas para evitar o uso de drogas por motoristas profissionais e contribuir com a redução de acidentes?

Eu acho que deveríamos usar uma combinação dos instrumentos que temos no momento, pois não fazer nada é pior. Eu acho que o uso de amostras de sangue em casos de acidentes, o uso de saliva (que reflete aproximadamente os níveis no sangue) em blitzs com kits rápidos ou coleta de saliva para análise em laboratórios especializados associados à revogação temporária da carteira de habilitação quando for confirmada a presença de drogas tanto no sangue como na saliva são instrumentos existentes e adequados. A reabilitação seria feita através da análise de drogas e álcool em amostras de cabelo em 2-3 testes por um ano.  Mais uma vez, os mecanismos apropriados deveriam ser discutidos com os setores relevantes da sociedade, especialistas, sindicatos, Ministérios da Saúde, Transportes, etc…

Dra. Alice A. da Matta Chasin é Doutora em Toxicologia e Mestre em Análises Toxicológicas FCF/USP;  Professora Titular de Toxicologia e Coordenadora da Área de Saúde do Centro de Pós-Graduação das Faculdades Oswaldo Cruz; Perito Criminal Toxicologista do IML/SP (1976-2004); Professora e Orientadora do Programa de Pós Graduação em Toxicologia e Análises Toxicológicas da FCF/USP (1997-2014). Especialista em Drogas de abuso com título conferido pela ONU (Organização das Nações Unidas – Divisão de Narcóticos). Professora concursada de Toxicologia Forense da Academia de Polícia de São Paulo. Presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia biênio 2003-2004; Membroda AAFS (American Academy of Forensic Sciences). Representante no Brasil do TIAFT (The International Association of Forensic Toxicologists).