PERNA FRATURADA: Caminhoneira fraturou uma perna ao colidir o cavalo mecânico com uma carreta, mas a montadora Scania informou que o acidente não teve vítima. Foto: Divulgação/Corpo de Bombeiros Voluntários de Concórdia

A caminhoneira que sobreviveu na colisão na BR-153/SC, quando dirigia o “caminhão trator” da Scania, sem placas, fraturou uma perna e está viva ‘por milagre’. Montadora informou que o “acidente” não teve vítimas

Durante a cobertura da FENATRAN, considerada a maior feira de transportes do país, o Estradas.com.br, as montadoras apresentaram grande variedade de modelos de caminhões novos expostos nos estandes.

A partir daí, foi iniciado o contato com as montadoras para saber quais as perspectivas de vendas em 2023, inclusive com a mudança do cenário político. Ao mesmo tempo, tentamos obter algumas informações sobre o transporte de caminhões novos.

Alguns assessores de montadoras reagiram bem, respondendo aos questionamentos sem dificuldades, outros demonstraram certo incômodo quando questionados sobre o transporte de veículos novos. Decidimos seguir em frente para entender melhor como é feito o transporte de caminhões e ônibus novos no Brasil.

Ao conversarmos com alguns caminhoneiros que conhecem bem o setor, ouvimos várias críticas. Desde questões de remuneração dos que dirigem o “cavalinho” até a concessionária ou cliente da montadora, assim como relato de acidentes (sinistros), situações de risco, como caminhoneiros que reclamavam ter sido empurrados para o acostamento para evitar uma colisão.

Caminhoneira sobrevive por milagre em colisão com “cavalinho” novo

No dia 25/11, fomos alertados de um acidente (sinistro) envolvendo um “cavalinho” (caminhão trator) Scania e uma carreta que transportava máquinas agrícolas na BR-153, região de Concórdia (SC). A colisão havia ocorrido na quarta-feira (24). Conseguimos apurar que a caminhoneira era experiente e levava o veículo de São Bernardo do Campo (SP), sede da Scania, até São Borja (RS).

Aparentemente, o caminhão teria como destino a Argentina. Mas segundo informações de um caminhoneiro, motoristas brasileiros de determinadas empresas são proibidos de levar até o destino final na Argentina e Chile por serem considerados irresponsáveis. O que não é um bom indício.

O “cavalinho” não tinha placa e aparentemente não estava com o cronotacógrafo verificado. A motorista perdeu o controle da direção numa curva, após colidir com a carreta e na sequência chocou-se com um paredão de pedra. Felizmente, sobreviveu, embora as imagens impressionam, principalmente depois que os bombeiros a retiraram das ferragens.

0 km: O “cavalinho” dirigido pela caminhoneira estava sem placas e colidiu com a carreta na BR-153/SC. Foto: Divulgação/Corpo de Bombeiros Voluntários de Concórdia

Há versões de que a carreta com máquinas agrícolas estava com carga fora das dimensões que foram desmentidas por testemunhas, outras de que a condutora pode ter cometido algum erro, inclusive em função das condições de dirigibilidade desse tipo de veículo ou da própria pista sobre as quais têm muitas críticas dos usuários.

Entramos em contato com a Scania para que prestasse informações sobre o caso, já que a motorista saiu da fábrica da montadora. Veja a resposta:

“A Scania teve conhecimento de um acidente sem vítimas (grifo nosso) ocorrido durante a entrega de um de seus caminhões esta semana. A empresa lamenta o sinistro e se solidariza com os envolvidos. As causas do acidente serão investigadas e a Scania está à disposição dos órgãos responsáveis.

Informa ainda que a partir da sua fábrica localizada em São Bernardo do Campo/SP são fabricados todos os produtos para entrega no Brasil e para exportação. A empresa é responsável pela entrega desses produtos e, independentemente da opção contratada, preza por cumprir critérios de segurança, qualidade e cuidado com o meio ambiente, sempre em linha com as normas e legislações vigentes e em acordo com as políticas da Scania.”

Nota do Estradas: Basta ver a foto da cabine do “cavalinho” para perceber que houve vítima, ao contrário do que a Scania afirmou em seu comunicado. Inclusive o Estradas.com.br apurou com testemunhas do atendimento, que a motorista fraturou a perna e sofreu escoriações. O local onde ocorreu a colisão é  trecho de curva. Atrás da caminhoneira ferida seguia um outro cavalinho , cujo destino também era São Borja (RS), dirigido por outra caminhoneira. A empresa também não esclareceu porque na Europa não utiliza esse tipo de transporte de veículos novos.

Colisão gerou debate no Facebook do Estradas

Ao divulgamos o caso no nosso Facebook.com/Estradascom.br começaram a pipocar denúncias sobre irregularidades neste tipo de transporte, bem como gente defendendo os profissionais que levam esses veículos para exportação, assim como concessionárias e transportadores em todo país. Separamos alguns deles:

Joseane Ribeiro: “Alguns se aproveitam de não poderem ser multados porque estão sem placas e ultrapassam na faixa contínua. Um dia tive que ir para o acostamento por causa de uma dessa.”

David Alexandre Ficagna: “Sou caminhoneiro há 40 anos, vejo quase que todos os dias “cavalinhos” novos trafegando por essas estradas. Mas vejo que os (as) motoristas andam dentro do limite de velocidade.”

José Aparecido: “Sabem qual o salário? 0.40 o km rodado, mais 10 de bonificação. Você tem que ser micro empreendedor Individual. Tudo é por sua conta, ida e volta. Você paga pra trabalhar para as montadoras e para as transportadoras.”

Italo Nogueira: “Esse tipo de descolamento, não poderia ser feito antes de emplacar, o transporte deveria ser realizado pelas pranchas, devidamente registradas e seguras. Não há outra forma de transportar.”

Como as montadoras que atuam neste segmento de pesados praticamente todas europeias, fomos observar como realizam esse trabalho na região das suas matrizes.

Por coincidência, realizamos curta entrevista na Fenatran com o diretor de Vendas da holandesa DAF, Gabriel Fernandes, e nosso repórter perguntou como a empresa realiza o transporte por aqui. Ele imediatamente esclareceu que tanto na Europa como no Brasil somente transportam os cavalinhos em caminhões prancha, para segurança dos motoristas e usuários das rodovias. Assim como para entregar veículos efetivamente “zero” km para os clientes. (Tema que será matéria de outra pauta no Estradas.com.br, do ponto de vista do direito do consumidor, que compra veículo zero mas recebe um já rodado e, às vezes, com pneus comprometidos)

Nosso processo de entrega do produto é muito simples. Nós temos dois transportadores, que fazem a entrega para toda nossa rede de concessionárias no Brasil, que nós chamamos de ‘caminhões embarcados’, em pranchas. Nós entendemos que esse é um modelo que tem diversas vantagens, e dentre elas, a própria segurança, do motorista, a integridade do veículo e a agilidade na entrega ao cliente”, esclareceu Fernandes.

Como é na Europa, matriz da maioria das montadoras de pesados do Brasil?

Empresas como Volvo e Scania, por exemplo, alegam que no Brasil depende da escolha do cliente. Já na Europa utilizam empresas especializadas como, por exemplo, a holandesa De Rooy que afirma ter uma posição de liderança em toda a Europa, transportando mais de 220 mil unidades por ano. Seus clientes são de todas as marcas conhecidas no Brasil, dentre elas Scania a Volvo, Mercedes (Mann), Iveco, DAF.

PRANCHAS: Na Europa os transporte de caminhões novos é sempre feito em caminhões pranchas como este da De Rooy. foto: Divulgação

Duas empresas espanholas também são muito respeitadas neste segmento de transportes. Sendo que numa delas, a Transordizia, o caminhoneiro brasileiro, Eduardo Perez, que mantém o canal Roda a Roda na Europa  trabalhou recentemente e fez vídeos sobre o tema. A outra gigante espanhola do setor é a Panalon .

Existem várias outras no velho continente, como a francesa Groupe Cat , com mais de 7.600 funcionários e subsidiárias em 20 países, especializada na logística de transportes de veículos, inclusive caminhões. Outra gigante do setor é a Stahl Logistics, sediada na Alemanha.

Naturalmente que todas essas empresas somente transportam os veículos novos em caminhões prancha. As normas de segurança na Europa são extremamente rígidas, mesmo considerando que as rodovias no velho continente são praticamente perfeitas. Sem contar que os profissionais são bem remunerados e jornada de trabalho e tempo de direção super controlados.

Já no Brasil, as condições das estradas e de trabalho dos motoristas não recomendariam o transporte do cavalinho com um “piloto” ao volante. Mas algumas montadoras estrangeiras que operam no nosso mercado fazem “como o cliente pede”. Será essa a verdadeira razão ou para baixar o preço? Naturalmente que não podemos confiar nas informações prestadas sobre os sinistros com esses veículos. Basta ver a Scania que diz ter tomado conhecimento de sinistro sem vítimas, quando as imagens mostram uma situação dramática.

Peritos explicam os riscos e problemas com pneus

No Facebook do portal, o caminhoneiro Francivaldo Cardoso alertou: “O cavalo trator quando desengatado é muito fácil de rodar na pista, principalmente se estiver molhada a rodovia…” O vídeo confirma exatamente o que ele diz:

Perguntamos a um dos peritos mais conceituados em análises de sinistros de veículos pesados do país, Rodrigo Kleinubing, o que achava desse tipo de transporte. Ele explicou que o caminhão trator não foi feito para andar sozinho e sim acoplado com reboque ou semirreboque. “É parte de uma composição rodoviária e se torna um veículo instável quando roda assim. Ele roda com uma distribuição de peso anormal e a chance de perder a estabilidade é muito maior.”

Outra situação revelada por profissionais do transporte foi que esses cavalinhos com frequência andam com a calibragem muito abaixa do recomendado, para tornar a rodagem mais macia. O que compromete a segurança e vida útil do pneu. Mas será que quem comprou o caminhão novo está ciente desse problema?

O Estradas.com.br buscou informações com alguns especialistas. O próprio perito de criminalística Rodrigo Kleinubing enfatizou que a calibragem mais baixa dos pneus do caminhão trator (cavalinho), superaquece o pneu, tem desgaste dos “ombros” e problemas de aderência.

O especialista Renato Siqueira da Continental, que produz pneus de reconhecida qualidade, esclareceu: “Danos estruturais na carcaça podem ocorrer como consequência da pressão excessivamente baixa, além do desgaste irregular da banda de rodagem e diminuição da vida útil do pneu. Quando um pneu é inflado aquém do especificado, ele se torna mais flexível, o que implica no aumento do estresse nas estruturas internas e deformação excessiva na parede lateral – como as cintas de aço de reforço da carcaça e os componentes de borracha do pneu – além de um possível aumento de temperatura devido à flexão constante destas estruturas. Estes fatores podem levar à fragilização e, posteriormente, ao rompimento desta cinta de aço e borracha que, por sua vez, levam a um dano de zíper ou até mesmo a separação de cintas.”  Abaixo a diferença de um pneu com a calibragem correta ou quando utilizado com calibragem abaixo do regulamentado ou com excesso de carga. Como disse o especialista da Continental: “Pneu é dedo duro. Em algum momento ele vai revelar tudo que foi feito com ele”.

Em seguida, ouvimos Wagner Marangão, um dos maiores especialistas em pneus de carga e ex-Presidente da ALAPA – Associação Latino Americana de Pneus e Aros. Na mesma linha de Siqueira, Marangão disse logo de cara que pneu tem “memória”. Ele explicou que tudo que for feito de errado com os pneus vai aparecer.

Inclusive o risco de explodir um pneu dianteiro no futuro ou soltar a banda de rodagem inesperadamente. Marangão foi bastante enfático sobre a negligência com a calibragem dos pneus, não só de caminhões como também de ônibus, que saem da montadora e são levados para a encarroçadora sem calibragem adequada. “Já tive que participar de investigações sobre sinistros (acidentes) graves e sempre nos preocupávamos muito com os ônibus, até pelo número de vidas dentro do veículo.”

Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas e autor do livro: “Recall – O que as montadoras não contam!, acrescentou que muitas vezes esse mau uso poderá ocasionar tragédias nas rodovias e naturalmente os proprietários do veículo vão atribuir aos pneus. Quando na realidade o mau uso no início da vida útil pode ser a causa da soltura da banda de rodagem ou explosão do pneu dianteiro que ocorre tempos depois.

“Quando um caminhão trator novo sai, por exemplo, de Curitiba (PR) até uma concessionária em Fortaleza (CE) terá rodado mais de 3% da vida útil do pneu de forma perigosa. Quando ocorrer o sinistro vão tentar responsabilizar o fabricante dos pneus e pedir o recall dos mesmos. A montadora se exime de qualquer responsabilidade”, esclarece Rizzotto.

Ele ainda acrescenta que o fato de ser uma montadora sueca, não significa que trabalham sempre focados na segurança como dizem. “Basta ver que a Volvo e a Scania realizam recall de caminhões na Europa e no Brasil nunca fizeram nenhum, apesar de alguns modelos brasileiros serem mundiais. Será que caminhão com defeito de fábrica somente existe no Brasil?” No livro mencionado, o único sobre o tema no Brasil, Rizzotto encontrou dezenas de documentos internos de montadoras de caminhões e ônibus, chamados de recall branco, que deveriam ensejar recall e que nunca foi realizado.

Em maio, o SOS Estradas realizou o seminário: “Transporte Rodoviário Socialmente Responsável”, na sede da Procuradoria Geral do Trabalho em Brasília (DF). Rizzotto coordenou o evento e diz que o objetivo foi apurar a responsabilidade de todos. “Quando a caminhoneira colidiu e saiu da pista quase morrendo, a tendência é achar que a culpa é do condutor. Mas precisamos ir na origem dos fatos e verificar as condições de trabalho e do transporte nos donos da carga, que neste caso é um veículo que saiu de uma montadora. Nós sabemos que muitos motoristas profissionais vivem em condições análogas a de escravos. Não quer dizer que seja o caso específico deste episódio da BR-153, mas é preciso que as autoridades investiguem e que o Ministério Público do Trabalho fique atento. Afinal, empresas estrangeiras devem oferecer as mesmas condições de segurança no Brasil que nos seus países de origem. Além da vida dos caminhoneiros, estão em risco a vida de todos que circulam nas rodovias.”

As autoridades também reconhecem a dificuldade de fiscalizar esses veículos, assim como encontrar dados confiáveis sobre sinistros com eles. Solicitamos esclarecimentos sobre esse tipo de transporte para a Polícia Rodoviária Federal na última quinta-feira que não respondeu até o momento.

Apesar disso, policiais rodoviários federais com quem conversamos em off reconhecem que a fiscalização é prejudicada, principalmente por andarem sem placa.  Um dos PRFs ouvidos disse que: “Essa situação além de implicar em risco de acidentes graves, pelas razões já sabidas, para a fiscalização ela já é um pouco diferenciada.” Mas esse é tema para outra pauta. Afinal, ninguém pode dizer que esses cavalinhos não chamam atenção.  E a resposta da Scania deixa claro que o número de vítimas relatados não é confiável.