Rodolfo RizzottoRodolfo Rizzotto – Coordenador do SOS Estradas – Programa de Segurança nas Estradas

Desde que entrou em vigor, em janeiro de 1998, o Código de Trânsito Brasileiro prevê, no seu artigo 165, penalidades para quem dirigir sob influência de álcool ou qualquer substância entorpecente que determine dependência.

O referido artigo sofreu várias alterações porque o texto original do CTB, estabelecia limite de presença máxima de seis decigramas de álcool por litro de sangue e, com a edição de novas leis, indevidamente chamadas de Lei Seca, foi sendo aperfeiçoado para punir adequadamente os motoristas que consumam bebidas alcoólicas e dirijam.

Apesar dessa evolução importante, que permitiu reduzir a cada dia os acidentes com motoristas embriagados e inibir a direção perigosa, passados 16 anos da entrada em vigor do CTB ainda não conseguimos encontrar a fórmula ideal para punir motoristas que dirijam sob efeito de entorpecentes ou medicamentos que tirem a condição de dirigir com segurança.

No caso das rodovias, há décadas que vem aumentando o uso de estimulantes por motoristas profissionais que se valem desse perigoso artifício para resistir às  longas jornadas e a pressão para entrega da carga no menor tempo possível. Inicialmente eram utilizados os chamados rebites. Alguns caseiros outros baseados na utilização de medicações de tarja preta.

Mas nos últimos 10 anos a droga entrou pesado na pista e na boleia.  E os motoristas profissionais, caminhoneiros e motoristas de ônibus, especialmente os de turismo, estão aderindo às drogas mais pesadas, em particular cocaína e crack.  Muitos empurrados pelas consequências da lógica escravocrata de exploração dos motoristas, praticada por más empresas de transportes e embarcadores, outros por tendência, facilidade, curiosidade, irresponsabilidade e falta de fiscalização.

Em março, a Rede Record de Televisão registrou, num longo documentário jornalístico, a facilidade como a droga é adquirida e flagrantes de motoristas admitindo o seu uso, especialmente cocaína e rebite. Um cegonheiro que transportava veículos no valor de R$ 800.000,00 tinha 150 comprimidos dentro da cabine. Fato esse que revela outro aspecto ainda mais grave e pouco considerado; motoristas que se tornam revendedores de drogas e rebites, sem falar os que transportam a droga, no meio da carga.

Nos últimos dias, o jornal Correio do Povo de Porto Alegre, iniciou uma série dedicada a mostrar a triste realidade dos motoristas profissionais. Os relatos e situações flagradas pelo jornal mostram a gravidade da situação e a facilidade como esses profissionais tem acesso as drogas e serviços correlatos como a prostituição.

Em 2007 o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Rodoviária Federal já tinham acendido a luz vermelha alertando para o aumento substancial do uso das drogas por motoristas profissionais. Na pesquisa de campo realizada em maio daquele ano, no posto da PRF localizado na BR 364, saída para Cuiabá-MT, uma equipe formada por membros do MPT, Fiscalização do Trabalho e da Polícia Rodoviária Federal, realizaram a coleta de urina de 104 (cento e quatro) motoristas e recolheram o questionário preenchido por 122 (cento e vinte e dois) profissionais.

Do total de motoristas parados, dezoito recusaram a oferta da amostra de urina, o que corresponde a 14,75% do universo total. Dez por cento dos que permitiram a coleta de urina, estavam sob os efeitos de anfetamina e/ou cocaína e 48% sob suspeita do uso de cocaína. Apenas 42% não registravam indícios de rebite ou droga.

Esses índices, ainda que não reflitam a realidade de todo o mercado profissional, mas de uma região específica, confirmam o acerto da definição do jornal gaúcho que definiu esses motoristas que quase não dormem e dirigem sob efeito de drogas como: Zumbis das Estradas.

Com a votação pela revogação da Lei 12.619/12, chamada de Lei do Descanso, que foi aprovada na Câmara dos Deputados no último dia 29 de abril, o limite de 4h de direção contínua passará para 5h 30m e o descanso entre jornadas baixa de 11h para 8h. Ainda falta passar pelo Senado, voltar para a Câmara e depois ser sancionado pela Presidenta, mas o atropelamento da aprovação, que foi visto na Câmara, deverá garantir a manutenção da maior parte do texto aprovado, caso não haja uma mudança de postura, principalmente do Governo.

O novo projeto dos deputados, que representam maus empresários do agronegócio, embarcadores, indústrias enfim, o poder econômico, sabem que as modificações apresentadas vão provocar a morte de milhares de brasileiros. O desrespeito à vida humana ficou evidente na farsa montada no plenário da Câmara em que pessoas na galeria, com faixas a favor dos deputados que votavam pela revogação da lei, eram aplaudidos efusivamente por supostos caminhoneiros. Depois ficou comprovado que eram pessoas de outras atividades pagaspara dar aos parlamentares uma credibilidade de apoio que na prática não tem.

Para tentar amenizar o estrago, trouxeram para o debate e texto da nova lei, os chamados exames de larga janela de detecção. Para os leigos são conhecidos como testes do cabelo, que permite identificar, com uma pequena amostra, o uso de drogas nos 90 dias anteriores a coleta.

Essa novidade, apesar de surgir para os holofotes do setor de transportes rodoviário durante os debates da Lei 12.619/12, já vem sendo utilizada no Brasil pelas forças armadas, polícias militares e polícia rodoviária federal, exatamente para evitar o ingresso de viciados nessas corporações.

Além disso, algumas empresas aéreas também estão requerendo esses exames para tripulações e até mecânicos. Os resultados são extremamente positivos e motivaram a Resolução 460 do Contran que vai exigir os exames toxicológicos de larga janela ainda este ano, na habilitação e renovação dos motoristas profissionais das categorias C, D e E.

A questão do uso das drogas por motoristas profissionais precisa ser combatida com urgência e as armas para obter resultados concretos são basicamente duas:

Em primeiro lugar, não permitir jornadas de 12h ou mais como prevê o novo projeto, além de garantir o tempo máximo de direção contínua de 4h e intervalo entre jornadas de 11h, conforme prevê a Lei 12.619/12. Caso contrário não teremos uma lei de Descanso, mas oficializaremos a Lei da Fadiga e essa é um rebite para o aumento das drogas. As consequências absolutamente previsíveis serão a morte de milhares de pessoas, fato que aliás já começa a ocorrer na medida em que a perspectiva de revogação da Lei 12.619/12 cria a expectativa de que toda punição será inócua. No novo texto está prevista, inclusive, uma espécie de anistia total e irrestrita.  Um prêmio para quem não respeitou a vida e uma punição para quem investiu em respeitar a lei em vigor.

O segundo mecanismo de combate é realmente utilizarmos os exames de larga janela de detecção, não apenas como instrumento de controle na renovação da carteira ou 1ª habilitação profissional, mas como instrumento permanente de prevenção e desestímulo ao uso de drogas.

Embora os exames de urina e sangue possam e devam ser utilizados como instrumentos de fiscalização, o fato de não permitirem flagrar o uso contumaz diminui as possibilidades de frear a expansão da droga neste setor.

A reiterada alegação de que o CTB permite punir apenas quem está sob uso da droga no ato de dirigir pode servir para punir o infrator em área urbana mas no caso do transporte rodoviário de cargas e passageiros é praticamente inviável.

O exame de sangue e urina exigem proximidade de uma laboratório, além do mais, a prática e experiência de rodovia, indicam que dificilmente operações realizadas nas estradas utilizariam esses exames.

Quem vai, por exemplo, testemunhar a coleta da urina do caminhoneiro? O patrulheiro e uma testemunha? Onde estacionar uma carreta com carga perecível ou de grande valor quando o motorista que aceita fazer o exame de urina ou sangue e aguardar pelo resultado e depois é flagrado sob efeito de droga e não pode mais dirigir? Imagine o caso de um ônibus de turismo, com 46 passageiros, parado no interior, em local sem infraestrutura, em que o motorista é flagrado sob efeito de droga? Como dar suporte a essas pessoas? Quanto tempo para obter o resultado?

Nesse sentido nos chamaram atenção dois eventos que teoricamente visavam discutir os exames toxicológicos e que na prática revelaram uma obsessão para inviabilizar os exames de larga janela. Supostamente científicos, foram evento que, além de não darem oportunidade ao contraditório e aos esclarecimentos para os representantes dos laboratórios que fazem esses exames, trouxeram depoimentos tão frágeis cientificamente e com tamanho desconhecimento que causaram até constrangimento em quem assistia e participava.

Nessa trincheira do ataque sem embasamento qualificado, estava uma representante do Ministério da Saúde que não conseguiu esclarecer porque seu o Ministério não apresentou nenhuma solução em 16 anos de vigência do CTB para combater o uso de drogas por motoristas, principalmente profissionais. Utilizou a eterna justificativa da interdisciplinaridade, sob o argumento de que o Ministério da Saúde não poderia fazer tudo sozinho. Em jargão de caminhoneiro, uma explicativa tipo rebimboca da parafuseta.

Curiosamente, a funcionária da Saúde demonstrava um empenho extraordinário contra essa nova alternativa que surgiu na prevenção e combate ao uso de drogas por motoristas profissionais. Justamente o Ministério da Saúde que sabe da importância da prevenção. Em nenhum momento a dita senhora abria espaço para ouvir e avaliar de que forma poderia usar o exame a favor do interesse público. Lembrava o espanhol que chegou no Brasil e perguntou: “Hay gobierno? (tem governo) e ouvia a resposta: Sim. E o espanhol respondeu: “Entonces soy contra!”. Ou seja, não importa o que digam ela é contra.

Postura semelhante teve a ABRAMET- Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, cuja responsável científica demonstrou total desconhecimento da matéria e também manifestou-se contra o exame. Ministério da Saúde e Abramet agiram de mãos dadas nos dois eventos e tinham em comum, além do despreparo para tratar do assunto, o fato de não apresentarem nenhum solução prática. Propunham  mais eventos para discutir a matéria. Enquanto organizam encontros pseudo científicos, para debater,  a droga se espalha e motoristas matam e morrem nas estradas.

A primeira vez que tomamos ciência desses exames foi por meio de uma a apresentação feita pelo presidente da entidade que reúne os laboratórios qualificados para exames de larga janela (ABRATOX). Convidado que foi pela Comissão Especial montada pelo agronegócio para revogar a Lei do Descanso, já contava de início com nossa desconfiança. Todos sabem de nossa posição francamente a favor da Lei do Descanso e portanto, convidados da outra parte seriam naturalmente vistos com reservas. Imaginávamos ser apenas mais um lobby no Congresso.

Fomos surpreendidos com uma apresentação qualificada e várias informações que nos motivaram a conhecer mais de perto como esses exames podem contribuir para reduzir acidentes nas nossas estradas, foco da existência do SOS Estradas.

Durante a apresentação e posteriormente em outro seminário que promovemos, o representante da ABRATOX trouxe mais detalhes do caso da empresa norte-americana J. B. Hunt, uma das maiores transportadoras do mundo, que estava obtendo resultados impressionantes como os exames de cabelo.

Ficamos intrigados com o caso e aproveitamos uma viagem pelos EUA e fomos para Arkansas, onde a empresa está sediada conhecer de perto a experiência realizada com esses exames. Fomos muito bem recebidos pelos responsáveis por esse projeto que nos deram todas as informações que solicitamos e vamos utilizar no nosso livro “Escravidão sobre Rodas” que será lançado em julho.

Nos EUA os exames toxicológicos são obrigatórios para motoristas profissionais. Entretanto, o meio utilizado para controlar o uso e consumo de drogas é o exame de urina.  Nesse sentido, nos chamou atenção por que uma empresa que já tinha o custo dos exames de urina estava gastando milhões de dólares com um exame que não era obrigatório?

Fomos surpreendidos com os motivos que levaram a empresa a adotar esse tipo de política. A J.B. Hunt teve dois acidentes com vítimas fatais em que o exame de urina feito no motorista logo após o acidente detectou cocaína no sangue do condutor. Por essa razão, a empresa percebeu que os exames de urina não eram uma garantia de que o motorista não seria um usuário contumaz de drogas. Bastavam poucos dias de abstenção antes do exame para que o motorista não fosse flagrado. Lógico que no caso de acidente, a obrigatoriedade de exame permitiria identifica o uso de drogas, mas a maioria acredita que nada vai acontecer.

A empresa começou a pesquisar outras formas de controlar o uso de drogas e descobriu que algumas pequenas transportadoras estavam fazendo uso do exame de cabelo, que permite detectar o consumo e drogas ao menos nos 90 dias anteriores da coleta.

A J.B. Hunt resolveu iniciar esses exames também com seus motoristas e funcionários. Para que não houvesse qualquer resistência, todos os funcionários, inclusive os executivos, fizeram o exame. A empresa avisou que iria fazer essa exigência e alertou que os que desejassem informar que eram usuários de drogas teriam todo o apoio da empresa. Quem não informasse mas fosse flagrado, teria que arcar com a responsabilidade da omissão.

O mais interessante é que a empresa tem em torno de 16 mil colaboradores, na sua maioria motorista. O resultado atualmente são mais de 65.000 exames realizados e zero acidentes com motoristas sob efeito de drogas, num período de seis anos.

Além dos benefícios humanos, decorrentes na saúde dos seus profissionais, a empresa conseguiu evitar a contratação de motoristas com histórico de drogas e criar um diferencial de marketing, pois é vista como empresa socialmente responsável e ainda ajuda o Governo americano, através de seus órgãos de saúde e segurança no trânsito, na elaboração de política de redução de acidentes com motoristas drogados.

O que ficou evidente é que esses exames podem de fato contribuir de forma decisiva para a redução de acidentes com motoristas sob efeito de droga mas principalmente inibir o seu uso, beneficiando inclusive a vida familiar desses profissionais e a segurança de todos os usuários das rodovias.

Por isso, estamos convencidos que precisamos usar todos os mecanismos em prol da redução de acidentes e os exames toxicológicos de larga janela são a melhor arma que apareceu desde que o CTB entrou em vigor, em particular para o segmento de transporte de cargas e passageiros. Isto não quer dizer que será fácil, sem ajustes no processo.

O que não pode é o Governo, através do Ministério da Saúde, não apresentar nenhuma solução em 16 anos e quando ela aparece combatê-la, sem sequer oferecer uma alternativa prática ou sugestões para o aperfeiçoamento da medida.  É mais uma iniciativa na contramão da prevenção e segurança no trânsito, praticada por gente que deveria estar apresentando soluções.

Ao mesmo tempo, precisamos de combater as causas do uso de drogas e rebite. E, a  maior delas é a jornada desumana a que são submetidos os profissionais. O projeto de lei dos deputados do agronegócio, indústria e embarcadores vai contribuir para o aumento da fadiga, acidentes  e das causas que levam as drogas.

Infelizmente, esse grupo de parlamentares e maus empresários, contam com o aval do Governo como ficou claro na votação em que o líder do partido da Presidenta e o líder do Governo na Câmara, votaram pela revogação da Lei do Descanso e aprovação da Lei da Fadiga. Esperamos que o Governo tenha sido iludido como foram as pessoas que estavam no plenário acompanhando a votação.

Rodolfo Rizzotto – Editor do Estradas.com.br e Coordenador do SOS Estradas – Programa de Segurança nas Estradas