Mais de 95% das rodovias federais não têm mais controle de velocidade
AJUDINHA: Infratores agora são informados pela PRF onde tem radar e onde não tem

O SOS Estradas está finalizando estudo sobre radares, em particular nas rodovias, para mostrar a realidade tanto em redução de sinistros de trânsito (acidentes), mortos e feridos, como desmistificar a chamada indústria da multa.

Afinal, a Polícia Rodoviária Federal (PRF), por exemplo, aplica em média 50 multas por excesso de velocidade a cada 1.000 km de rodovias federais por dia, com dezenas de milhares de veículos trafegando.

Portanto, os números mostram que de fato a indústria da multa não existe. Há casos de abusos isolados mas a realidade é que o país tem adotado uma política que protege os infratores, abandona os princípios de segurança viária e coloca a vida de inocentes em risco.

Impunidade garantida com Resolução do Contran

Pisar fundo nas estradas ficou cada dia mais fácil pela garantia da impunidade. A Resolução 798 do Contran, que entrou em vigor em novembro do ano passado, curiosamente na véspera do feriado de Finados, obriga as autoridades a indicarem a localização de todos os radares fixos, inclusive publicando nos sites.

A primeira vista, isso altera muito pouco a fiscalização da velocidade nas rodovias já que os condutores dificilmente são surpreendidos porque os equipamentos normalmente estão sinalizados e indicados nos aplicativos como Waze e Google Maps.

A inovação criminosa da Resolução 798 foi determinar que os radares portáteis somente possam ser utilizados após estudos que justifiquem sua presença e em locais específicos. Assim, a Polícia Rodoviária Federal indica no seu site onde pode ter fiscalização com esses equipamentos, seja com as pistolas ou nos cavaletes (radares estáticos).

No total da malha rodoviária sob responsabilidade da PRF, quase 70.000 km, somente existe algum tipo de fiscalização de velocidade em 5% dela. Não somam sequer 3.500 km. Isto significa na prática que nos demais trechos os condutores podem andar a qualquer velocidade com a certeza de que não serão punidos.

Caso um policial identifique um trecho onde vários condutores estão, por exemplo, trafegando em velocidades como 200km/h, o PRF não pode autuar por excesso de velocidade, caso aquele trecho não esteja sinalizado, indicado no site da corporação, com estudo que o justifique. É mais ou menos como se a polícia tivesse que informar o bandido onde vai estar e ainda fazer estudo para justificar sua presença.

Mais de 95% das rodovias federais não têm mais controle de velocidade
Motoristas agora sabem onde podem andar sem serem multados por excesso de velocidade nas rodovias federais

Nas rodovias federais não existe nenhuma fiscalização de velocidade à noite. Diferente das rodovias paulistas onde, desde o ano passado, a Polícia Militar Rodoviária iniciou a operação de radares noturnos.

Mas a Resolução 798 criou uma situação gravíssima já que na maioria dos estados não existe sequer equipe técnica para realizar estudos sobre os trechos que deveriam ter radares portáteis fiscalizando. Como indicar a presença dos mesmos baseadas em estudos que não existem? A fiscalização era feita baseada no bom senso e na experiência dos policiais rodoviários que, afinal de contas, atendem aos acidentes. Disso, eles entendem.

RESOLUÇÃO NÃO TEM FUNDAMENTO TÉCNICO

O Estradas.com.br solicitou ao Contran, por meio do Denatran, estudo técnico que justificasse a Resolução 798. Nunca enviaram nem disponibilizam no site do órgão. A razão é simples, esses estudos não existem. Ao menos não há nada que justifique as medidas tomadas e que comprove que isso pode contribuir com a segurança viária.

Entretanto, o governo brasileiro aderiu à Década de Segurança Viária da ONU, inclusive representante do atual governo participou de Conferência de Alto Nível em Estocolmo, na Suécia, em fevereiro do ano passado, assumindo o compromisso de reduzir acidentes (sinistros de trânsito – nova denominação da ABNT), mortos e feridos no período de 2021-2030.

Dentre as medidas que são consideradas prioritárias, está a Meta 6 que implica em reduzir pela metade os condutores que andam acima do limite de velocidade e as lesões e mortes decorrentes dos sinistros de trânsito (acidentes) com excesso de velocidade.

RADARES FIXOS E OCULTOS SÃO COMPLEMENTARES, ensina Manual da OMS

A utilização de radares ocultos ou sinalizados foi objeto de orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS), cujo Manual de Gestão da Velocidade, ensina os países a combater os abusos.

Vale a pena ler esse trecho do manual que demonstra que a Resolução 798 não atende a princípios básicos de gestão da velocidade e da segurança viária.

“Uma estratégia altamente eficiente para a gestão da velocidade envolve operações conjuntas com radares de velocidade fixos e móveis (instalados em veículos). Embora sejam, em geral, facilmente detectados e logo identificados pelos condutores, os radares fixos são uma mensagem consistente de que os excessos de velocidade não serão tolerados e de que existe uma fiscalização no local.

Como estratégia complementar, o uso de radares ocultos móveis, especialmente em áreas urbanas, provou ser muito eficiente em transmitir aos condutores a mensagem de que o excesso de velocidade é ilegal e não será tolerado qualquer que seja o local ou a hora .

Uma combinação dos dois revelou-se muito eficiente na redução da velocidade média de circulação em trechos principais da malha viária – e, em alguns casos, na redução dos limites de velocidade existentes. Radares fixos constituem outra medida útil para lidar com os riscos de colisões ligadas à velocidade num determinado local da rede viária.

Eles podem servir para tratar um ponto crítico, com efeitos mensuráveis sobre as colisões nos locais onde são colocados. Mas há poucas evidências de que têm um impacto na redução das colisões no restante da rede, exceto para o pequeno efeito de “halo” que se estende por alguns poucos quilômetros além do local do radar.”

O representante do governo brasileiro, que participou da Conferência na Suécia, pode ter aproveitado o lado turístico da viagem, mas seguramente não fez o dever de casa. Afinal, caso lesse o Manual (inclusive com versão em português), teria aprendido a lição e não teríamos a Resolução 798 do Contran, que está sob controle do Ministério da Infraestrutura e da Secretaria de Transportes, ao qual ele pertence.

O discurso da Indústria da Multa não encontra sustentação matemática

Muitos políticos, personalidades, jornalistas e até autoridades, sobem no palanque para falar na suposta” indústria da multa”. O presidente da República chegou a acusar os policiais de ficarem atrás das árvores escondidos para tentar flagrar os “pobres motoristas” desavisados.

Nenhum desses que acusam a “indústria da multa” fala na fábrica de infratores, muito menos na impunidade no trânsito ou discursam sobre o drama da vítimas de trânsito. Então, vejamos os dados.

Em 2018, a PRF aplicou 2,3 milhões de multas por excesso de velocidade. Devido à determinação de retirada dos radares portáteis pelo Presidente da República, em 16 de agosto de 2019, o número de multas caiu para 1,4 milhão, em 2019, e pouco mais de 392 mil, em 2020.

Para evitar distorções, vamos utilizar as multas aplicadas em 2018, com total exato de 2.345.158 (dois milhões, trezentos e quarenta e cinco mil e cento e cinquenta e oito).

Considerando que a PRF fiscaliza 70.000 km de rodovias e que devemos considerar 140 mil km no total, devido aos dois sentidos das vias, dividimos 2,3 milhões por 365 dias, teremos 6.425 multas por dia em toda malha rodoviária federal. Como são 140.000km, são menos de 0,05 multas por km/dia. Portanto, 50 multas ao longo de 24h em cada 1000km de rodovias federais, ou seja, média de 2,1 multas aproximadamente por hora por cada 1.000 km de rodovias federais.

Qualquer usuário de rodovia federal no país que rodar por 1 hora na estrada encontrará dezenas de condutores, ou até centenas, dependendo do tráfego, acima do limite. Somente na Dutra, rodovia que liga o Rio de Janeiro a São Paulo, trafegam diariamente, segundo a concessionária, 860 mil veículos.

O que dizem os profissionais do setor sobre os radares

A Polícia Militar Rodoviária do Estado de São Paulo enviou nota oficial explicando como realiza seu trabalho que contribuiu para sucessivas reduções de acidentes (sinistros de trânsito), mortos e feridos.

“Dentre as ações que são desenvolvidas, a fiscalização de excesso de velocidade possui um grande destaque, juntamente com a fiscalização de embriaguez ao volante, devido ao elevado potencial lesivo que resulta do cometimento dessas infrações. Importante destacar que a infração de excesso de velocidade potencializa os efeitos de qualquer incidente ou sinistro relacionado ao trânsito, sendo a infração precursora dos sinistros com lesões mais graves ou mortes. Por isso a decisão por fiscalizarmos infrações do Código de Trânsito Brasileiro, que se não respeitadas, podem levar aos efeitos mais drásticos à sociedade brasileira.”

Rodrigo Kleinubing, um dos maiores especialistas do país em perícia de acidentes de trânsito e co-autor do livro “Dinâmica dos Acidentes de Trânsito. Análises, Reconstruções e Prevenção”, uma das obras mais importantes sobre o tema, fala sobre a importância dos radares:Rodrigo Kleinübing

“Existe uma relação direta entre o excesso de velocidade e a gravidade das lesões e consequentemente as fatalidades no trânsito, visto que a energia (cinética) do movimento que produz os danos, aumenta exponencialmente com o aumento da velocidade.  Os controladores de velocidade são fundamentais e os radares portáteis, estáticos e móveis, não devem ser sinalizados. Apenas informar que a via tem controle de radar. “

Já Renato Dias, ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal relembra um caso que marcou seu trabalho na pista:

“Ao longo dos meus 15 anos de atividade-fim na PRF, ainda tenho a lembrança cristalina de um acidente com vítima fatal que atendi na famosa curva da BR-060, conhecida como “Curva A-Lá Goiânia”, sentido Anapolis-Goiânia, em trecho de pista duplicada, km 133 aproximadamente, logo após o Posto da PRF, no final de um declive acentuado.  Neste local havia placas sinalizando a velocidade de 80km/h e de Declive Acentuado. Mas, alguns motoristas nunca respeitavam. Foi o caso destes acidentes que atendi em uma única ocorrência, ou seja, três acidentes em sequência no mesmo local, culminando com a pista totalmente interditada e vitima fatal no local, no caso, um Capitão da Polícia Militar de Goiás.”

E acrescenta o veterano PRF: “Neste ponto não havia redutores eletrônicos de velocidade, apenas sonorizadores transversais.  Era só chover, pista molhada, que acidentes ali ocorriam, apesar de no dia do acidente acima narrado a pista estivesse seca. A partir do dia que o DNIT instalou no local dois redutores eletrônicos de velocidade (80km/h), sendo um no meio do declive e o outro antes da curva acentuada à esquerda, nunca mais tivemos acidentes fatais no local, reduzindo em 90% o número de saída de pista e tombamentos no trecho.” 

Fábio Abritta, que foi gerente de operações da Autoban, NovaDutra, diretor da Rota do Oeste, Transbrasiliana e agora está na condição de CEO/COO na ViaRondon Concessionaria de Rodovias, analisa a situação com cálculos que fez recentemente.

“Temos sete pontos de radares em operação  que registraram 1900 autuações e nesse trecho passaram 93 mil veículos, o percentual foi de 2,1% Significa que 98% respeitaram o limite e 2% colocaram vidas em risco. Na nossa experiência em várias concessionárias de rodovias, quando você instala os radares a tendência é a queda brutal dos acidentes (sinistros de trânsito), feridos e muitas vezes até zera as vítimas fatais. No mundo todo a forma de coibir o excesso de velocidade são os radares. ”

Espanha dá exemplo de como Brasil deveria trabalhar

Enquanto no Brasil falamos em “indústria da multa”, na Espanha a preocupação é combater a fábrica de infratores, estimulada pela impunidade.

Na última operação de verão em 2020, apesar da pandemia, as autoridades espanholas colocaram em operação radares fixos, viaturas não identificadas com radares móveis, multando veículos em movimento, helicópteros que multam velocidade em pelo vôo, além de mais de 200 câmeras focadas em multar quem está usando o celular enquanto dirige, sem contar os drones que também capturam essas imagens.

Não é ataque com míssil. Apenas um helicóptero espanhol multando velocidade

Outra operação que obtém grande sucesso no controle de velocidade são os radares em cascata. A polícia instala radares estáticos na pista, visíveis para os condutores ou até mesmo policiais ficam posicionados com os radares pistola. A maioria dos motoristas reduzem a velocidade. Quando aceleram novamente, achando que estão livres da fiscalização, são flagrados por radares escondidos, que pegam o veículo por trás. O motorista não tem a menor chance de identificar que havia um radar no trecho.

Não é uma aeronave pronta para disparar um míssil e sim autoridade de trânsito pronta para multar excesso de velocidade

Na França, protestos recentes nas rodovias foram acompanhados da destruição de centenas de radares. As autoridades francesas decidiram então comprar radares torre, super modernos, que são mais precisos e conseguem flagra excesso de velocidade há 200 metros de distância em 8 faixas de rolamento simultaneamente.

Ao mesmo tempo também utilizam radares embarcados em veículos não identificados como o da foto. O infrator não percebe que está ultrapassando um veículo da polícia com radar dentro.

Policias multam dentro de veículos da polícia que não são identificados. O infrator é multado e nem percebe.

Vítimas pedem radares mas ganham quebra-molas

O movimento Somos Todos Vítimas da BR-265, em Minas Gerais, que reúne vítimas de sinistros de trânsito (acidentes) no trecho, lutou pela instalação de radares no trecho. Depois de instalados, houve queda brutal dos acidentes. Entretanto, com a nova política de desligamento de radares, os acidentes voltaram a acontecer. Num ofício enviado ao DNIT o movimento esclarece alguns pontos:

“A curva mais preocupante é a localizada na Ponte do Rio Grande, dos 12 acidentes que ocorreram, 6 veículos caíram no rio. No mesmo período em 2019, ocorreu apenas um acidente na ponte do Rio Grande e nenhum acidente foi registrado nos outros trechos analisados onde tinham os radares. Somente na véspera do Natal de 2020, em menos de 24 horas foram 7 acidentes só na Ponte do Rio Grande, um óbito e várias pessoas feridas. “

Curioso é que no mesmo documento o movimento pede ao DNIT providências quanto aos quebra-molas que o órgão promete instalar no trecho porque não pode instalar os radares.  Cientes que os quebra-molas podem contribuir acidentes e danos aos veículos, o movimento pede policiamento para evitar que isso ocorra. O pedido chega a ser inacreditável :

O movimento Somos Todos Vítimas da BR265 não têm medido esforços para tentar sanar os problemas da BR-265. Nesse sentido, após o Natal o movimento solicitou ao DNIT a colocação de redutores de velocidades antes e depois da ponte do Rio Grande, tais como quebra-molas, já que devido o decreto presidencial, não pode mais ser instalado o radar que foi removido.

O local é considerado perímetro urbano, pois possui um vilarejo nos arredores da ponte. Os moradores correm sérios riscos ao atravessar a ponte. Pois não existe mais as muretas de proteção e os veículos passam em alta velocidade. O DNIT atendeu ao pedido do movimento e irá instalar quebra-molas antes e depois da Ponte do Rio Grande.

No entanto, para que esses quebra-molas não se transformem em pontos de ultrapassagem e nem em um local de mais acidentes, solicita-se patrulhamento policial mais frequente na Ponte do Rio Grande.“

Cabe ressaltar que o movimento já tinha produzido faixa com recursos das vítimas e moradores da região, alertando os motoristas sobre os riscos de acidentes, já que o DNIT não oferecia a sinalização adequada. Veja a foto:

Portanto, a solução encontrada pelo DNIT é colocar os velhos e perigosos quebra-molas para não desagradar ao chefe que odeia radares. E uma entidade que reúne vítimas ainda precisa avisar que isso vai ocorrer.

Este é o Brasil da “Indústria da Multa” que o Estradas.com.br vai desmistificar em várias matérias e no estudo que será publicado e divulgado ainda este mês.