
Conforme o Estradas.com.br já revelou, o nome da Real Expresso, empresa responsável pelo ônibus que tombou e deixou 11 mortos, foi pintado de preto enquanto os corpos ainda eram transportados e as vítimas, atendidas ou levadas para os hospitais. Tal ação pode ser considerada como adulteração do local do crime.
A pintura, realizada com tamanha facilidade em meio às condições dramáticas da tragédia, indica que, provavelmente, pessoas ligadas à empresa tiveram acesso ao veículo sem impedimentos.
Isso pode comprometer a eficácia da perícia, caso algum equipamento como o cronotacógrafo tenha sido alterado. Conhecido com a “caixa preta do transporte rodoviário” registra dados essenciais, como velocidade durante o trajeto, tempo de direção contínua e distância percorrida – informações fundamentais para a apuração dos fatos.
O Estradas.com.br solicitou esclarecimentos à Polícia Civil sobre quem autorizou a pintura que ocultou a marca da empresa, mas não obteve resposta. No vídeo da coletiva a que o portal teve acesso, o delegado responsável pelo caso afirmou que aguardava informações de rastreamento do veículo fornecidas pela empresa, mas não mencionou o tacógrafo.
Alterar local de sinistro é fraude
De acordo com Rodrigo Kleinübing, perito especialista em sinistros de trânsito com veículos pesados, “a alteração em um local de crime de trânsito se constitui em fraude processual, prevista no artigo 347 do Código Penal Brasileiro. Por isso, é fundamental o isolamento e a preservação do local em toda sua abrangência por parte da autoridade policial, garantindo a cadeia de custódia e, consequentemente, o trabalho dos peritos criminais, que irão apontar as causas do sinistro com base na análise científica dos vestígios.”
Conforme o Art. 347 – Fraude processual, do Código Penal: “Inovar artificiosamente, na pendência de procedimento policial, de processo penal, civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito.”
Pena: detenção de três meses a dois anos, e multa.
Parágrafo único: “Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.”
Assim, em acidentes (sinistros) com ônibus que envolvam vítimas e indiquem possível ocorrência de crime (como homicídio culposo, lesão corporal ou imprudência), o local deve permanecer intacto até a realização da perícia pelas autoridades competentes.
Isso não ocorreu no caso em questão, como ficou evidente. Houve uma intervenção externa que favoreceu a empresa de ônibus, ainda que, até o momento, apenas no aspecto da exposição negativa da marca.
Além disso, qualquer tentativa de prejudicar ou interferir na investigação pode ser considerada um crime contra a administração da justiça.
Contradições nas informações da Polícia Civil
Em entrevista coletiva, na quarta-feira (9), sobre a tragédia na MG-223, em Araguari (MG), o delegado Regional da Polícia Civil de Minas Gerais, Luciano Santos, não faz menção ao cronotacógrafo; apenas diz que solicitou o rastreamento do veículo para a empresa. Ele também não cita a Real Expresso.
No comunicado inicial da Polícia Civil de Minas sobre o caso, constava que a tragédia envolvia uma colisão entre um ônibus e caminhão. O Estradas solicitou onde a Polícia obteve essa informação já que nenhuma vítima, nem mesmo a assessoria da empresa, havia cogitada essa possibilidade. Posteriormente, o comunicado da Polícia retirou essa informação.
Quanto ao motorista, o delegado Santos disse apenas que o homem tem 58 anos, sendo 32 anos como motorista profissional. “O motorista do ônibus disse que viu um vulto, um reflexo, e perdeu o controle do veículo. Basicamente, ele alega isso. É um homem de 58 anos de idade, 32 anos como motorista; deu depoimento e foi liberado. Ele alegou que fazia essa rota semanalmente. Nós pedimos os documentos da empresa de ônibus. Ela já foi oficiada e nós aguardamos o envio desses documentos. Aguardamos a questão do rastreamento do veículo e outras provas e outras informações”, frisou.
Quando aos 11 mortos, o delegado Santos disse que “cinco foram identificadas por meio de datiloscopia; três, por meio de reconhecimento de familiares e outras três por meio do prontuário civil.”
Omissão do nome da empresa sem base legal
Quando o portal questionou porque não mencionava no comunicado o nome da empresa, informação essencial para quem estivesse com familiares viajando de ônibus daquela rota, a Polícia Civil alegou que: “Em razão da Lei de Abuso de Autoridade e da Lei Geral de Proteção de Dados, a instituição não divulga o nome dos envolvidos.”
Ao mesmo tempo, acrescentou que a informação do envolvimento de outro veículo foi corrigida.
Lei Geral de Proteção de Dados não pode ser utilizada para esconder nome de empresa
A justificativa de não revelar o nome da empresa, na resposta da assessoria da PCMG, não tem nenhuma fundamentação legal. Quanto mais quando as fotos, vídeos e matérias na grande imprensa identificavam a Real Expresso sem nenhuma restrição.
A LGPD (Lei nº 13.709/2018) aplica-se ao tratamento de dados pessoais definidos explicitamente no art. 5º, inciso I, como:
Art. 5º, inciso I: “dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável.”
Quanto à menção de “pessoa jurídica” na LGPD:
Quando a LGPD menciona, no seu artigo 1º, que a lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, realizados “por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado”, significa:
Que a LGPD regula o tratamento de dados pessoais feito por pessoas físicas e jurídicas. Ou seja, são as pessoas jurídicas (empresas, associações, instituições públicas) que devem respeitar as regras ao tratar dados pessoais de indivíduos.
A lei não protege dados das próprias empresas, como nome comercial. A LGPD não ampara restrição quanto à divulgação do nome da empresa operadora do ônibus, já que este é de interesse público e não é considerado um dado pessoal.
Diante disso, a Polícia Civil de Minas Gerais não pode usar a LGPD para justificar a omissão do nome de uma empresa envolvida em acidente. A LGPD não protege empresas contra a divulgação de seus nomes em eventos públicos, especialmente sinistros com ampla repercussão.
Entidade de vítimas preocupada com a qualidade da investigação
Para o coordenador do SOS Estradas, Rodolfo Rizzotto, a omissão do nome da empresa, por parte da PCMG, é preocupante. “Não se trata de informação que mereça qualquer proteção pela legislação vigente. Ao mesmo tempo, a alteração do veículo em pleno local da tragédia, bem como as alegações para omitir o nome da empresa, servem de alerta para as vítimas, porque são indícios de que a apuração pode não ter a qualidade necessária para um caso tão grave.”, assinala Rizzotto , que também é fundador de entidade de vítimas.
Ele também destaca que não encontrou nenhuma menção ao cronotacógrafo nas entrevistas do delegado responsável pelo caso. “É muito estranho que não haja menção ao equipamento considerado a caixa preta do setor, com informações essenciais para apuração da tragédia, mas falem em pedir informações para a empresa sobre o rastreamento que ela realiza do próprio veículo.”
Veja a entrevista do delegado:

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