SALVAR VIDAS: Pessoas comuns se dedicam a salvar vidas nas estradas brasileiras. Foto: Reprodução

Entre 2011 e 2021, 74.670 pessoas morreram vítimas de acidentes nas estradas federais do Brasil, sem contar as áreas urbanas e trechos estaduais e municipais. E os números poderiam ser muito maiores se não fosse o trabalho de socorristas e até mesmo ativistas, pessoas dedicam a vida para tentar reduzir a quantidade de mortos no trânsito.

É o caso da técnica de enfermagem, Sara Souza, de 30 anos. Há seis anos, seu trabalho é salvar vidas às margens da Rodovia Marechal Rondon, que liga o município de Bauru a Castilho, no interior de São Paulo. Ela faz parte da equipe de socorristas que dá o primeiro atendimento às vítimas, estabilizando sinais vitais e estancando feridas, por exemplo.

Todos os dias, a jovem sai de casa com um frio na barriga, sabendo que o serviço do dia pode ser salvar a vida de alguém. “Temos treinamento manual e psicológico, saímos de casa com a missão de estar a postos, mas toda ocorrência é diferente. Posso já ter trabalhado em diversos capotamentos, mas sempre existe a tensão de fazer o melhor pelo paciente”.

Apesar de, no momento da ocorrência, não ter tempo para pensar em vítimas e culpados, Sara afirma que o trabalho na rodovia a fez ver o trânsito de uma outra maneira.

“Meu pensamento mudou completamente. Hoje, não atendo telefone no carro de forma alguma. De tanto a imprudência dos próprios usuários das rodovias, passei a redobrar a atenção comigo e com os outros motoristas. Se eu pudesse deixar um recado para todos, seria: tenham cuidado, pois em cada carro há pelo menos uma vida, uma pessoa indo pro trabalho ou viajando. Cuidado com a velocidade, o celular, o sono e a bebida alcoólica, para que todos cheguem em casa para suas famílias.”

SOCORRO: Socorristas prestam o atendimento inicial às vítimas, estabilizando OS sinais vitais. Foto: Toby Melville/Agência Reuters

Evitando acidentes

Fundador do movimento “Não Foi Acidente”, desde 2011, Ava Gambel também tem um importante papel na preservação de vidas. Diferente do trabalho de socorristas, a atuação de ativistas como Gambel é para evitar acidentes e alertar para o perigo de beber e dirigir. Uma das grandes conquistas do movimento foi a mudança na punição para o motorista que provoca uma morte ao dirigir embriagado.

“Não foi um trabalho simples. Antes, o motorista embriagado, na maioria das vezes, não ia para a cadeia, porque a pena era de 2 a 4 anos, que acabava revertida em serviços comunitários. Em 2013, fizemos uma petição com quase um milhão de assinaturas para entrar no Congresso com um Projeto de Lei que aumentasse a pena para até 8 anos”, explica Gambel.

Apenas em 2017, após muitas mudanças no texto no meio do caminho, o Projeto virou a Lei 13.546/2017, e a pena passou a ser de reclusão de 5 a 8 anos para quem cometer homicídio culposo ao dirigir sob efeito de álcool, além da suspensão da CNH.

“Infelizmente, não conseguimos que o crime fosse considerado um homicídio doloso, quando a pessoa assume o risco de matar alguém. Hoje, dependemos do entendimento da autoridade, mas ainda é uma luta nossa”, explica o ativista.

Além do trabalho de deixar a punição mais rígida para quem bebe e dirige, e assim coibir a prática, Gambel dá suporte para famílias de vítimas de trânsito. Com um trânsito tão violento, o fundador do movimento “Não Foi Acidente” lamenta o fato de o Brasil, atualmente, gastar mais com os acidentes do que com a prevenção deles.

“Como diria a Yared [deputada federal que tem a segurança no trânsito como bandeira], existe uma indústria da morte, pessoas lucram com tantos acidentes”, pondera.

Análise de dados que salvam vidas

Fundador da entidade de vítimas de trânsito “Trânsito Amigo”, Rodolfo Rizzotto começou a atuar para a redução de acidentes em 1993, quando rodava mais de 80 mil km por ano nas estradas brasileiras, e via uma série de situações de risco.

“Eu conversava nos pontos de paradas com motoristas de ônibus e caminhoneiros, e via que eles tinham ideias muito interessantes para reduzir acidentes que jamais chegariam às autoridades, então decidi fazer essa ponte”, conta.

Na época, Rizzotto era proprietário da Revistas das Estradas, uma publicação gratuita distribuída em pontos de informações turísticas em todo o Brasil. “Procurei o Ministro dos Transportes para oferecer gratuitamente uma página para dicas de segurança na revista. Depois disso, comecei a participar das reuniões, fazer análises e observar dados”, relembra.

No decorrer dos anos, Rizzotto criou o portal de informações Estradas e começou a introduzir pautas importantes no debate público, como o uso de cinto de segurança nos ônibus, ampliação dos anúncios de recall, uso de faixas refletivas em veículos de carga, gestão de velocidade e tantos outros temas.

Rizzotto explica que estudos da ONU e OMS apontam que um país como o Brasil gasta em torno de 4% do PIB em prejuízos causados por acidentes de trânsito. Enquanto isso, dados da Confederação Nacional do Transporte apontam que apenas 0,13% do PIB é gasto com infraestrutura de transportes.

Segundo Rizzotto, os acidentes, além do gigantesco e irreparável prejuízo do ponto de vista humano, geram uma grande perda econômica, de mão de obra (do acidentado e, muitas vezes, do familiar que deixa de produzir para cuidar da vítima), gastos com infraestrutura viária avariada, hospital, indenizações, perdas materiais, entre tantas outras implicações.

“Priorizar a redução de acidentes é um excelente negócio para o país, tanto do ponto de vista das vidas que serão salvas, quanto do ponto de vítima econômico. Por isso, é tão importante investir na prevenção, pois haverá também uma economia grande na outra ponta”, pondera Rizzotto.

Brasil gasta mais com acidentes do que com prevenção

O gasto com acidentes supera o investimento em rodovias. De acordo com dados da 24ª edição da Pesquisa CNT de Rodovias, realizada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), é histórico no Brasil o custo dos acidentes superarem o valor investido em infraestrutura, “realidade que poderia ser evitada com a melhora da pavimentação, sinalização e geometria das rodovias”, informa a entidade.

PREJUÍZO: O custo com acidentes em 2021 foi de R$ 12,1 bilhões. Foto: Reginaldo Castro/Estadão Conteúdo

Dados da CNT mostram que, em 2021, o custo econômico dos acidentes viários foi de R$ 12,2 bilhões, enquanto o total pago em investimentos em rodovias federais foi de R$ 5,7 bilhões, resultando em uma diferença de R$ 6,5 bilhões. Um índice está diretamente ligado a outro, pois com melhorias nas rodovias, de estrutura e sinalização, seria possível reduzir a quantidade de acidentes, explica Rizzotto.

Outro dado é alarmante: ano a ano, o investimento na infraestrutura de transportes vem sendo reduzido no Brasil. Em 2011, foram gastos R$ 11,2 bilhões com o transporte rodoviário e R$ 33 bilhões com todo setor de transportes. Em 2021, o investimento em transporte rodoviário caiu para R$ 5,7 bilhões e para o setor de transporte em geral foi reduzido para R$ 8,69 bilhões.

Em 2020, apenas 0,13% do PIB foi direcionado para a infraestrutura de transportes, contra 0,47% em 2010. Ainda assim, significativamente abaixo do investimento federal realizado em infraestrutura de transporte observado, por exemplo, em meados da década de 1970, próximo a 2% do PIB, segundo informações da CNT.

Impacto na qualidade das estradas

O estado geral das estradas brasileiras refletiu a redução dos investimentos. O levantamento da CNT avaliou 109.103 quilômetros de estradas pavimentadas federais e estaduais constatou que o estado geral de 61,8% da malha rodoviária brasileira é classificado como regular, ruim ou péssimo.

Para a avaliação do estado geral das rodovias, são analisadas três características: Pavimento, Sinalização e Geometria da Via. Os dados mostram ainda que a qualidade da sinalização das rodovias mantidas pela União em 2021 (64,7% da extensão com problemas) voltou ao mesmo nível de 2014 (63,1% com problemas).

MALHA RUIM: 61,8% da malha rodoviária brasileira é classificada como regular, ruim ou péssima. Foto: Fabian Ribeiro/Agência Free/Estadão Conteúdo

Para o presidente da CNT, Vander Costa, os resultados mostram que a situação precisa ser enfrentada com grande rapidez e assertividade. “A forte retomada de investimentos é urgente e necessária para prover ao país uma malha rodoviária mais moderna e eficiente, condição indispensável para a promoção do desenvolvimento.”

Dia a dia nas estradas

As condições das estradas afetam diretamente a rotina de quem ganha a vida sobre elas. Uma pesquisa sobre o perfil do caminhoneiro autônomo aponta a infraestrutura das rodovias como principal dificuldade da profissão, apontada por 34% dos entrevistados. 59,7% dos caminhoneiros participantes disseram nunca se sentirem seguros dos estradas brasileiras, enquanto 40,9% veem na manutenção a saída para aumentar a segurança. 76% dos caminhoneiros avaliam as rodovias como ruins ou péssimas.

Almir Souza é um deles. Caminhoneiro veterano, aos 59 anos, vê sua vida cada vez mais em risco nas estradas brasileiras. “Toda vez que chego em casa é um agradecimento. O estado das estradas está cada vez pior, é falta de sinalização, buracos, trechos perigosos sem o devido alerta? Parece que a cada ano a profissão fica mais perigosa”, argumenta.

O que diz o governo

Questionado sobre os dados, o Ministério da Infraestrutura disse que, desde 2019, um total de 4,7 mil quilômetros de rodovias federais foram renovadas em todo país. Cerca de 630,3 quilômetros foram duplicados, pavimentados e restaurados.

“Houve, também, significativo avanço na cobertura contratual, chegando a mais de 96% da malha sob supervisão estatal, superando o que historicamente era observado, segundo informa o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT)”, informou, por meio de nota.

O Ministério disse ainda que, com a redução orçamentária necessária devido às restrições fiscais dos últimos anos, o Governo Federal investe na parceria com a iniciativa privada. Desde 2019, foram leiloadas sete rodovias, que terão R$ 50 bilhões em investimentos privados. Este valor é equivalente a aproximadamente seis vezes o orçamento para realizar obras em todos os setores de transporte.

Fonte: UOL Carros